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“A virtude é uma disposição para agir de acordo com a razão e a justiça.”
Aristóteles, “Ética a Nicômaco”

Esse título me ocorreu porque observando a expansão do extremismo radical, e recorrendo à história para examinar seus sucessos e fracassos prolongados, no pêndulo secular entre o fascismo e a democracia liberal, que a cada 100 anos parecem alternar-se sempre que os povos atingem certo cansaço em pagar o custo da democracia (eleições, liberdade de expressão, repartição de poderes, estado de direito, corrupções, políticas progressivas de igualdade econômica, racial, gênero, liberdade sexual, debate público ou confrontação retórica no parlamento ou na mídia), anseiam por liberar seus instintos primitivos por tiranias e soluções rápidas e fáceis, portanto ineficazes.

Afastadas, nos últimos 35 anos, as mínimas chances de o extremismo de esquerda ascender ao poder hegemônico, a direita radical mundial marcha em direção à tirania, mais uma vez com o silencio criminoso dos liberais – há exceções, óbvio – mas a voz destes some na gritaria da sala cheia de barulho dos “idiotas da internet”, como pontuou Umberto Eco. Onde estão os moderados da direita? Aqueles conservadores que leram, aprenderam e desenvolveram argumentos legítimos contra o domínio intelectual da esquerda? Estão mortos ou dormindo ou fingindo-se de mortos. Desapareceram do cenário. O momento é dos subversivos radicais de direita. Não invento: subversivo de direita é uma expressão de Norberto Bobbio. Hoje as esquerdas são as conservadoras das instituições políticas. A extrema direita deseja o caos, que precede a ditadura. Invadem o Capitólio, invadem a Praça dos Três Poderes. Querem explodir tudo, a começar pelo resultado das urnas eleitorais. Trump perde a eleição e telefona pedindo 11 mil votos à autoridade eleitoral de um estado americano. Bolsonaro reúne os comandantes militares para – quem sabe? – um estado de sítio? Um estado de emergência? Diante da recusa, ambos incitam, se omitem, diante da insurreição dos “malucos”, adredemente preparada.
Portanto, a hora é da luta política pelos corações e mentes. E a resistência já começou. Nos Estados Unidos as multidões reagem nas ruas das cidades norte-americanas, diante do fascismo ascendente do regime de Trump na sua marcha desembestada, que segue atropelando a Constituição, diante dos olhos complacentes da Suprema Corte norte-americana. Em Israel, Benjamin Netanyahu, sustenta o massacre sobre a população civil palestina e mantém a tensão permanente porque – suspeita-se – sem ela estaria fora do poder e provavelmente preso por corrupção. Na Hungria, a direita radical pretendeu banir o movimento LGBTQ+, e viu as ruas de Budapeste transbordantes de gente em uma marcha tão gigante quanto pacífica. As praças e auditórios nas maiores cidades do mundo estão cheias de clamor contra o extermínio dos palestinos, com apoio inclusive de intelectuais israelenses.

Esse tipo de paradoxo de vontade – intrínseco na contradição entre as melhores intensões e as atitudes extremas – sugere que há uma tensão entre a vontade individual e as forças externas que a influenciam. Algo como que contrapõe a liberdade individual e a determinação social; a vontade coletiva versus a vontade individual, sob a influência da cultura, da história e da política na formação dessas vontades; o paradoxo da vontade pode ser um conceito interessante para explorar em diferentes contextos, incluindo a filosofia, a psicologia, a política e a sociologia. Observamos o mundo e o zeitgeist – o espírito do tempo – parece ser este. Numa síntese, o paradoxo da vontade, refere-se à intenção de promover uma causa ou ideologia e as ações extremas que acabam por prejudicar ou destruir a própria causa.

Algumas possíveis interpretações desse paradoxo incluem: a radicalização excessiva, que pode levar a uma perda de foco nos objetivos originais, que parecem se resumir na manutenção do status quo, e à adoção de métodos que são contraproducentes; a intolerância e a violência podem alienar potenciais aliados e simpatizantes, enfraquecendo a causa. Por outro lado, a busca por pureza ideológica pode levar a uma fragmentação e divisão dentro do movimento de resistência, enfraquecendo a sua capacidade de alcançar seus objetivos. Mas o paradoxo também ameaça o fascismo crescente. O extremismo radical quando desprovido de um plano, que resulte no beneficio coletivo das massas desfavorecidas, ou seja, nutrido apenas pelo ódio e a negação da realidade social, ao final do extermínio do adversário, transformado em inimigo, resultará o vazio, a conquista do poder pelo poder.

No Brasil o presidente Lula, por exemplo, um líder de esquerda, governa com uma coalizão de direita e faz um governo de direita. A economia é liberal, mas o Ministro Haddad, um diplomata, se empenha em concertar os desequilíbrios históricos da economia, buscando aliviar as classes trabalhadoras da pesada carga tributária, compensando com aumento de tributação sobre os mais ricos, que pagam proporcionalmente muito pouco ou nada. Não consegue. O parlamento brasileiro tem lado e auto interesse na matéria. Ou melhor, conflito de interesses; seria uma descrição mais adequada. Nem é preciso fazer menção aos lobbies dos grupos de interesse, com ou sem representação em Brasília.
O parlamento brasileiro é presidido por políticos de direita. Oligarcas de longo curso, jovens coronéis engravatados; uma nova geração de patrimonialistas, nepotistas e clientelistas, que se sucedem há 500 anos neste fisiológico país tropical. Acrescente-se na equação os supersalários de Brasília e uma pitada de subsídios, na ordem de “apenas” 600 bilhões e temos o caldeirão completo. Ah! O fanatismo político religioso campeia. Multidões de crentes e seguidores, civis e militares se reúnem nas igrejas ou em cultos para orar pela pátria e votar no próximo escolhido, supostamente, por Jesus, através dos bispos conhecidos, segundo se pode identificar, dentre os mais ricos do país.

Nos Estados Unidos da América, na Europa, na Ásia e no Oriente Médio não é muito diferente. O presidente norte-americano faz um governo de reality show, algo que fez com sucesso relativo durante mais de 10 anos, cujo propósito de atender aos fanáticos atropela a Constituição todos os dias. Segundo sua sobrinha, uma renomada psicóloga norte-americana, trata-se de um sociopata completo. Jamais leu um livro na vida. Não lê sequer os relatórios mais importantes do governo do mais poderoso país do mundo. Não consegue ler um Power point. Entedia-se. Vê televisão obsessivamente e escreve tuites durante a madrugada, os mais desequilibrados e carregados de insultos e grosserias que pode. No seu segundo mandato, Donald Trump está cercado de uma equipe ainda mais incompetente, formada por acólitos de um culto religioso à sua personalidade. A parada militar que promoveu na data de seu aniversário foi uma amostra da República de Bananas, em que ele adoraria transformar os Estados Unidos.

Sua policia, melhor seria dizer milícia, usando máscaras e carros não identificáveis, invade fazendas, construções, hotéis e estacionamentos em busca de imigrantes, legais ou ilegais. O governo de Trump ameaça os advogados e universidades que não seguem a sua doutrina desigualitária, excludente, claramente racista. O presidente mente compulsivamente e se embaraça em falas desencontradas, contraditórias e equivocadas. A economia despenca juntamente com os índices de aprovação do governo. Não satisfeito, Donald Trump afronta a soberania de aliados e concorrentes e impõe tarifas no comércio mundial com seu país, sem parecer dar-se conta de que os custos serão repassados aos preços dos produtos importados e adquiridos por seus concidadãos. A rede Walmart sinalizou com a medida de explicitar o custo do repasse e está sendo ameaçada de retaliação pelo regime trumpista. Às favas com o livre mercado, portanto.

No Brasil, o Congresso, sob a alegação de defender os contribuintes, num movimento em falso pautou maliciosamente a derrubada de um decreto regulatório do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF)sobre as operações de câmbio, algo rotineiro e dentro da competência exclusiva do Poder Executivo, e foi atropelado pela opinião pública porque escancarou a intenção oculta de atender seus próprios interesses, ou seja, do privilegiado contribuinte do andar de cima. Ao mesmo tempo, além de dar inicio à campanha eleitoral, forneceu a arma às esquerdas, que acordaram para a esquecida pauta da luta de classes, à qual se soma a bandeira da eliminação da jornada 6×1.

O falso zelo da direita brasileira com as contas públicas tornou-se mais evidente porque o Congresso, anteriormente, já havia aumentado o número de parlamentares e seus próprios custos, suportados pela massa do andar de baixo. Aquela mesma que não fora atingida pelo decreto do IOF. Ora, o Congresso não está nem um pouco interessado em políticas de austeridade e controle de gastos. No Brasil, a austeridade muda de nome. Até há pouco tempo era chamada de “teto de gastos”. Antes era chamada de controle orçamentário, controle de dívida, equilíbrio fiscal etc. Aqui, quando algo não funciona, ou quando não dá certo, ou quando soa ruim, mudam-se os nomes. Por exemplo, “Odebrecht” – depois dos escândalos de corrupção – passou a se chamar “Novonor”. O “teto de gastos” passou a se chamar “arcabouço fiscal”. Como já escrevi antes, não se engane, é a velha ideia da austeridade fiscal posta em prática. Digo velha porque a ideia de conter os gastos do príncipe surgiu no século XVII. Desde então, nenhum governo a aprecia.

Na experiência brasileira foram raros os momentos em que foi posta em prática de verdade. Basta ver os rombos do governo anterior no tal teto de gastos, que adotou esse nome querendo dizer “agora chega”. Em ano de eleição piora. Todos os governos, em maior ou menor grau, gastam absurdos para se reeleger ou eleger seus sucessores, e explodem as despesas. Sem falar no financiamento da campanha eleitoral dos partidos, que atingem números alucinantes, ainda que vivamos em pleno mundo digital, onde as “lacrações” abundam nas mídias em campanha eleitoral permanente. Uma auditoria séria eliminaria praticamente todas as siglas políticas por desvios ou descontroles nas contas partidárias. Um dos melhores negócios no Brasil é fundar igrejas, sindicatos e partidos políticos. Não há barreiras. É verba garantida. Com um agravante: todos prometem o paraíso, mas não entregam.

O terceiro governo Lula negociou, e conseguiu um alívio do Congresso para fazer a transição do governo anterior para uma nova política fiscal, sob a promessa de estruturar o que, dessa vez, foi chamado de arcabouço fiscal, afastando a ideia de controle, limite, barreira, como se a realidade fosse transformada pela semântica. Isso ocorreu em janeiro e fevereiro de 2023. Desde então, o país espera que o governo e o Parlamento apresentem esse conjunto de regras, que abrange despesas obrigatórias, custeio da máquina burocrática governamental, investimentos, renúncias fiscais e dívida pública. No meio-tempo pressiona-se o Banco Central para abaixar os juros. Mas, antes, o órgão quer ver o tal arcabouço funcionar e a inflação permanecer sob controle.

Onde o calo parecia que ia apertar seria no projeto mais necessário, mais urgente e, paradoxalmente, o mais difícil: a reforma tributária. Estamos em meados de 2025, e o projeto passou supreendentemente quase incólume pelo Congresso. Todos estavam de acordo em realizar a tal reforma e todos pareciam em desacordo com as propostas até então apresentadas por todos os governos recentes. Pois bem, a despeito das disputas entre os estados e destes com a União, dos municípios estarem em desacordo, tanto com a União quanto com os estados, a reforma avançou. As empresas estão sufocadas pela carga tributária (entre 111 países do mundo, o Brasil perde apenas para Malta na tributação das empresas), os cidadãos comuns são tributados de todos os lados, por via direta e indireta. As disputas administrativas judiciais e administrativas atingem números astronômicos. O sistema era confuso e misterioso, para dizer em termos simples e rasos. E isso é tudo o que um regime tributário não deve ser.

Essa disparidade, conflituosa, ambígua e dissonante no seio da sociedade é refletida nos seus representantes parlamentares. Afinal, no Parlamento há egressos das classes trabalhadoras, das corporações, do meio empresarial, dos funcionários públicos, das profissões liberais, das carreiras militares e do magistério. Esses cidadãos dependem de verbas ou obras estaduais, municipais e federais para se elegerem e reelegerem. Seus interesses pessoais estão, em boa medida e com exceções, vinculados às velhas práticas patrimonialistas, ao clientelismo mais rasteiro que se possa imaginar. Pois bem, é desse caldeirão de interesses em conflito que inacreditavelmente emergiu a solução, que pode ser capaz de projetar o país para dias melhores no futuro de médio prazo.

Todavia, a questão premente e mais atual do mundo econômico, hoje, é a postulação global do pensamento econômico progressista para elevar a tributação dos bilionários, na pessoa física, e a exportação de multinacionais, na pessoa jurídica. A espiral oligárquica (os super-ricos), que aceitou alta taxação nos anos 1920, de cerca de 70%, reduziu drasticamente sua contribuição nos últimos cinquenta anos, expandindo a desigualdade social de maneira colossal, especialmente a partir dos anos 1990, navegando nas águas, digamos, ortodoxas do pensamento econômico dominante do neoliberalismo. Entretanto, os liberais norte-americanos (leia-se a esquerda) sustentam propostas com taxação aos bilionários, subindo de 6% a 8% ao ano, a partir de 1 bilhão de dólares, bastante consensual diante do quase zero que estão pagando, seguindo a solução para a desigualdade apontada por Thomas Piketty, no seu impressionante O capital no século XXI (Intrínseca, 2013). O verdadeiro campo de luta é esse. Não à toa, o governo Trump 2.0 aprovou uma lei draconiana no Congresso cortando os impostos dos ricos e a assistência de saúde dos pobres, mesmo correndo o risco de perder a maioria na Câmara e no Senado. Esse risco é o paradoxo da vontade: os políticos querem ser reeleitos e, ao mesmo tempo, arruinar a vida de seus eleitores.

Por uma dessas necessidades diabólicas da vida parlamentar, especialmente quando a política está tão radicalizada, a oposição extremista brasileira tentará torpedear qualquer ideia que possa funcionar a curto e médio prazo. Como fez no caso recente do IOF. O ideal seria que todas as correntes confluíssem para um terreno produtivo e, no interesse comum dos brasileiros, que convivem num país em que 1% da população detém metade de toda a riqueza, segundo o Laboratório de Desigualdade Mundial, da Escola de Economia de Paris, em seu relatório de 2022. Afinal, numa democracia a rotatividade no governo, com a alternância do poder, devia produzir alguma racionalidade consensual, suficiente para tirar o Brasil das trevas tributárias e colocá-lo no patamar do século XXI, pronto para incluir, crescer e prosperar, dentro de uma estrutura tributária socialmente justa e democraticamente transparente.

Uma boa notícia seria saber que, junto com o aumento do caixa do governo – qualquer governo – as normas de controle e repressão da corrupção das autoridades e dos políticos seriam reforçadas, sem falar em eliminar o orçamento secreto, agora legalizado, mas ainda obscuro, e cuidar da qualidade dos gastos públicos, nunca avaliados pelos resultados socioeconômicos, mas sempre pelo resultado eleitoreiro.
Mas, eis que a trama se adensa esplendidamente. O atrabiliário presidente norte-americano vale-se das tarifas comerciais para atacar o Brasil, país que sistematicamente compra mais do que vende dos Estados Unidos. Inobstante, intima o presidente brasileiro a deixar Jair Bolsonaro livre, supondo que Lula controla o STF, tal como ele, Trump, controla a Suprema Corte. Trump, portanto, usa as tarifas como sanção política, incorrendo em mais uma ilegalidade, o que fez o premiado economista Paul Krugman, em artigo de 9 de julho, no site Substack, pedir o impeachment de Donald Trump. Como diria a minha amiga que surfa no Arpoador: não vai rolar. Com a intenção de proteger seu acólito brasileiro, Jair Bolsonaro, Trump vai acabar prejudicando a extrema direita brasileira nas eleições – visto que estará exposta na sua hipocrisia patriótica oportunista – e de quebra, entrega na bandeja as cabeças de Jair e Eduardo Bolsonaro, por obstrução de justiça, ao Supremo Tribunal Federal.

Assim, o paradoxo da vontade se impõe, mais uma vez: “Se te queres matar, por que não te queres matar?”, escreveu Fernando Pessoa, dirigindo-se ao suicida relutante entre a intenção e o gesto.

​Rio de Janeiro, 15 de julho de 2025.

Francisco Rohan de Lima
Rohan Lima é macapaense, 70 anos, advogado. Trabalhou na Vale, produziu teatro com o Grupo Experiência, publicou livros jurídicos e se considera um “jornalista acidental”, título de seu último livro repleto de crônicas sobre suas atividades.

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