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Não, não é um texto sobre biologia. Pelo menos não exatamente.

Nesse acompanhar diário de para onde o mundo vai, tem sido inevitável perceber o quanto o atual governo estadunidense vai se esforçando para provocar o “suicíd1o” do império, pra pegar emprestado a expressão de algum intelectual de Ciência Política cujo nome não lembro. Parece ser mesmo o “início do fim”.

É impactante ver para onde a ignorância pode levar um ser humano quando ele está convicto de que está com a razão. Aliás, do ponto de vista iluminista é um estouro: como o uso de uma razão (se é que há uma) poderia conduzir um império à ruína? A mesma nação conhecida por formar (e até importar) tantos cérebros brilhantes, e fundar instituições de excelência científica, agora nada de braçada a favor de uma maré contra-iluminista e anticientífica na raiz.

Claro que, como um grande império, o fim não é rápido, tampouco repentino. É um processo. Acontece que, como se aprende na Ecologia, muitos peixes-rêmoras dependem, para a infelicidade deles próprios, do tubarão. Se o tubarão vai mal, os peixes-rêmoras padecem. Assim como, se o boi morre, é certo que o carrapato terá dias ruins. Em matéria econômica – que também é “eco”, “oiko”, como em ecológica, já que vem do mesmo lugar: a (nossa?) casa – o Brasil, as demais nações latino-americanas e boa parte do Sul Global são os peixes-rêmoras. E os carrapatos.

Não tenho dúvidas de que Eduardo Galeano seria mais garboso e elegante com as palavras, mas, se estivéssemos tomando uma cerveja, eu e ele, numa mesa de bar, em Montevidéu ou em Belém, ele talvez me desse alguma razão. Validaria, ao menos em parte, esse raciocínio que atesta o nosso sufocamento não só econômico, como moral, cívico, de soberania, e até cultural, tamanha nossa dependência hodierna.

Mas o oceano é extenso o suficiente para ser casa de outros tubarões. Um deles, dos grandes, atende pelo nome de China. Com uma vitalidade assombrosa, vai acumulando peixes-rêmoras e toda uma biota ao seu redor. Navega cada vez mais longe nesse oceano de possibilidades, tendo contato com fauna e flora do mundo inteiro. Do que ele é feito ou como funcionam seus processos fisiológicos internos, pouco sabemos, quase nada. A camada visível é que: ele desfila saúde e não pára de se alimentar.

Com a China como tubarão, a relação ecológica não muda. Ainda é dependência. Até onde se pode ver, esse tubarão vai ganhando território, se valendo das debilidades do concorrente a Oeste, e angariando condições para uma “nova ordem oceânica”. Nós, cidadãos do Sul Global, talvez sejamos somente parte de uma colônia que habita o interior dos peixes-rêmoras. Infelizmente, apenas poucos de nós conseguimos ter uma visão de como os mares estão se transformando. Aliás, tem nos cabido sentir o quanto eles estão aquecendo além da conta, mudando pra sempre o script de todo o ecossistema.

Observamos (quase) tudo, ao mesmo tempo em que somos nós mesmos atores desse processo. Já não conseguimos influenciar as decisões dos peixes-rêmoras, tampouco o movimento das marés, embora alguns de nós não cansemos de tentar.

Passar a andar com um novo tubarão, levado por correntes marinhas que sopram forte para o Leste, pode ser só uma questão de sobrevivência. Porque talvez nunca seja sobre ser feliz e livre, como prega a megaquestionada democracia – de resiliência duvidosa -, ou sobre o peixe em que habitamos crescer em musculatura e autonomia a ponto de ter “a sua própria turma”. Não. Peixes-rêmoras se mostram incapazes de (sobre)viver por suas próprias forças. Estão sempre a depender de alguém superior e mais capaz, que lhes oferte o que comer. Nesse oceano cheio de desigualdades e abusos, nós, trabalhadores, temos menos direitos que o dinheiro que nós próprios ajudamos os tubarões a gerar. Nos sobra o direito de sobreviver das migalhas e restos de entes com superpoderes. Dentro dos tubarões, grandes corporações, sensores que os ajudam a sentir o cheiro de sangue na água.

Nós, como trabalhadores que fazem todas essas grandes criaturas funcionarem, temos sido cada vez mais destituídos das capacidades de influenciar para onde os peixes-rêmoras devem nadar. Somos parte da regra vital, mas parece que anestesiados pela dureza da grande sala de máquinas que nosso ecossistema se tornou.

Vivemos na grande e triste dependência de que um tubarão limite o poder de outro tubarão, evitando que os excessos de poder de um bicho hipertrofiado ao extremo seja causa de (ainda maiores) injustiças e abusos contra toda a fauna e a flora desse oceano cada vez mais desconfortável e hostil.

Enquanto isso, nadamos com os tubarões.

Wendell Andrade
Wendell Andrade É mestre em desenvolvimento local na Amazônia (UFPA) e especialista em políticas climáticas na iniciativa Política por Inteiro, no Instituto Talanoa.

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