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Na obra em estudo, o autor tematiza sobre a divergência teórica acerca da melhor interpretação do direito. A partir do tema proposto, apresenta uma nova proposta interpretativa do direito, que contempla, para além dos métodos convencionais de interpretação e das teorias hermenêuticas que tentam explicar o direito (teorias semânticas, convencionalistas, pragmáticas), a proposta do direito como integridade.

O problema enfrentado por Dworkin pretende questionar qual a melhor concepção interpretativa do direito. Dentre as várias teorias, como hipótese, Dworkin desenvolve a tese do direito como integridade.

Dworkin elege a tese da integridade como melhor interpretação para o direito, contrapondo-a ao convencionalismo, às teorias semânticas e ao pragmatismo. Para o autor, a proposta hermenêutica do direito como integridade é um ideal autônomo a perseguir, segundo o qual é possível encontrar, à luz dos princípios jurídicos de uma comunidade, uma única resposta correta para um caso concreto e não muitas respostas, amparada – esta única resposta – em princípios e não em questões de orientação política ou de moral subjetiva.

Como argumento central da tese do direito como integridade, Dworkin exercita o raciocínio jurídico  da interpretação construtiva, para o qual a resposta certa poderia ser encontrada na razão, sendo uma questão moral, decorrendo daí a importância dos princípios, mesmo quando concorrentes, a tornar íntegro e coeso o labor da interpretação jurídica, possibilitando uma única resposta correta a um hard case (onde ocorre colisão entre princípios jurídicos).

Os argumentos secundários utilizados pelo autor vão se afigurar na refutação do direito como simples questão de fato, pela interpretação construtivista do direito, pela autonomia e possibilidade de colisão entre equidade, justiça e integridade; para ele, ideais tangíveis. No conflito entre justiça e equidade, o autor propõe a integridade como terceiro ideal interpretativo do direito. Dworkin também expõe à sua teoria do direito como integridade as decisões conciliatórias majoritárias e o constante embate destas entre equidade e justiça. Com este argumento, aprofunda a idéia pela qual, nos casos jurídicos de difícil decisão, a abordagem interpretativa dos princípios jurídicos conduzirá o juiz à melhor reposta. Argumenta ainda que os princípios, mesmo quando concorrentes, se tornam íntegros e coesos no curso da interpretação jurídica e oferecem a melhor resposta para os casos jurídicos de difícil decisão. Dworkin também personifica a comunidade em um ente moral, imantado de valores que se traduzem em princípios. A interpretação do direito conduz o juiz à resposta correta e se legitimar nos princípios da comunidade. Este é outro argumento que o autor utiliza para justificar a integridade como melhor interpretação construtiva do direito.

O curso da obra expõe uma resposta desenvolvia por Dworkin, para quem o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva. A obra trata sobre a teoria do direito e nela o autor argumenta contra a alegação positivista de que não podem existir respostas certas a questões jurídicas polêmicas, insistindo que nesses casos difíceis existe resposta certa a ser encontrada na razão. Ele afirma que a controvérsia diz respeito à moral, não à metafísica, e que, entendida como uma questão moral, a tese da inexistência de respostas certas é muito pouco conveniente, tanto do ponto de vista moral quanto jurídico.

O autor inicia a sua obra falando da importância do direito e do modo como os juízes decidem os casos. Além da importância econômica, os processos judiciais são importantes em outro aspecto que não pode ser avaliado em termos de dinheiro, que é a dimensão moral a eles associada.  Além desses efeitos diretos sobre as partes, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, as decisões judiciais afetam muitas pessoas, pois a lei frequentemente se torna aquilo que o juiz afirma.

Tendo em vista a importância do modo como os juízes decidem, é também importante saber o que eles pensam que é direito e que tipo de divergência tem sobre esse assunto. Dworkin compreende que os processos judiciais sempre suscitam, em princípio, três tipos de questões: 1) questões de fato, 2) questões de direito e 3) as questões interligadas de moralidade e fidelidade.

A questão de fato ocorre quando os juízes divergem quanto aos fatos concretos e históricos envolvidos na controvérsia, enquanto que, na questão de moralidade, divergem quanto ao que é certo e errado. Já na questão de direito, advogados e juízes divergem com freqüência sobre a lei que rege um caso.

O autor chama de proposição jurídica todas as afirmações e alegações que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autoriza. Todos pensam que as proposições jurídicas são verdadeiras ou falsas em virtude de outros tipos de proposições, das quais as proposições jurídicas são parasitárias. Essas proposições mais conhecidas oferecem aquilo que o autor chama de “fundamentos do direito”.

Com isso, o autor distingue duas maneiras pelas quais advogados e juízes poderiam divergir relativamente á verdade de uma proposição jurídica: 1) divergência empírica sobre o direito; 2) divergência teórica sobre o direito.

A divergência empírica sobre o direito nada tem de misteriosa, podendo as pessoas, por exemplo, divergirem a propósito de quais palavras estão nos códigos. Mas a divergência teórica no direito, que é a divergência quanto aos fundamentos do direito, é mais problemática, pois esclarece que, de fato, juízes e advogados divergem sobre o que direito realmente é.

O público em geral parece alheio ao problema da divergência teórica sobre o direito, estando mais preocupado com a questão da fidelidade, isto é, se os juízes descobrem ou inventam o direito que anunciam. Esse debate público é um exemplo disfarçado de divergência teórica sobre o direito. É inquestionável que os juízes “criam novo direito” toda vez que decidem um caso importante, e, em geral, apresentam essas novas formulações jurídicas como relatos aperfeiçoados daquilo que o direito já é, se devidamente compreendido.

Tratando da concepção do direito como simples questão de fato, o autor aduz que os filósofos do direito, sabendo que a divergência teórica sobre o direito é problemática, tentam dar respostas evasivas, dizendo que a divergência teórica é uma ilusão, pois, na verdade, juízes e advogados estariam de acordo sobre os fundamentos da lei. A esse ponto de vista, Dworkin nomeia de direito como simples questão de fato dos fundamentos do direito, segundo o qual o direito nada mais é do que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas e os tribunais, decidiram no passado. Por esse motivo, para essa concepção, juízes e advogados divergem teoricamente não sobre o que o direito é, mais sobre o que deveria ser, o que consiste numa divergência quanto a questões de moralidade e de fidelidade, não de direito.

A questão da fidelidade exige um debate público, sendo a opinião mais popular nos EUA e na Grã-Bretanha a de que os juízes devem sempre seguir o direito em vez de tentar aperfeiçoá-lo. Algumas pessoas sustentam que o juiz deve sempre tentar melhorar a lei, que ele deve ser sempre político. Entretanto, essas duas versões dos leigos, a “conservadora” e a “progressista”, baseiam-se na tese acadêmica de que o direito vigente é uma simples questão de fato. A visão acadêmica é mais sofisticada do que a visão leiga, pois, ao contrário desta, que acredita que nos repertórios jurídicos existam normas para decisão de todos os casos, aquela enfatiza que o direito pode ser omisso quanto a um litígio porque nenhuma decisão institucional anterior foi tomada, e, nesses casos, o juiz tem que exercer o seu discernimento para criar uma nova norma, preenchendo as lacunas onde o direito silencie e tornando-o mais preciso onde for vago.

Esse ponto de vista do direito como simples questão de fato não é unânime, mas é muito popular entre leigos e escritores acadêmicos de filosofia do direito.

Dworkin objeta que o direito é um fenômeno social, cuja prática é argumentativa e que esse aspecto argumentativo crucial da prática do direito pode ser estudado de duas maneiras: 1) do ponto de vista externo do sociólogo ou do historiador, ou 2) do ponto de vista interno daqueles que fazem as reivindicações. As duas perspectivas sobre o direito são essenciais.

O livro de Dworkin adota o ponto de vista interno, aquele do participante, tentando apreender a natureza argumentativa de nossa prática jurídica, estudando o argumento jurídico formal a partir do ponto de vista do juiz.

Tentando demonstrar como a tese do simples fato distorce a prática jurídica, Dworkin relata quatro casos judiciais reais, decididos por juízes ingleses e norte-americanos, evidenciando que neles se travou uma batalha sobre a questão do direito e não sobre uma simples questão de fato.

Os argumentos utilizados na resolução desses casos remetiam ao direito e não a meras questões de fato, tanto nos dois primeiros casos apresentados (Elmer[1] e snail darter[2]), que dependiam para ser resolvidos de uma melhor interpretação da verdadeira lei, a partir de um texto legislativo específico (teoria da legislação), como nos dois últimos (McLoughlin[3] e Brown[4]), que foram polêmicos não em relação à interpretação de uma lei, mas em relação à interpretação dos precedentes (teoria dos precedentes), em função da divergência entre aplicar a estes casos a doutrina estrita do precedente (que obriga os juízes a seguirem as decisões anteriores de outros tribunais mesmo acreditando que essas decisões foram erradas), ou a doutrina atenuada do precedente (que exige apenas que o juiz atribua algum peso a decisões anteriores sobre o mesmo problema, e que ele deve segui-las a menos que as considere erradas o bastante para suplantar a presunção inicial a seu favor).

Nos quatro casos apresentados por Dworkin, a divergência suscitada acerca do direito não foi apenas superficial, incidindo em sua essência. Isto mostra que aquele ponto de vista do direito como simples questão de fato, que sustenta que o direito apóia-se em questões de mero fato histórico, que a única divergência sensata sobre o direito é a divergência empírica sobre aquilo que as instituições jurídicas realmente decidiram no passado, não corresponde à verdadeira problemática que se coloca no direito. Ao contrário do que afirma a visão do direito como simples questão de fato, a divergência teórica não é, para Dworkin, ilusória e as regras para o uso de “direito” não ligam o direito a um mero fato histórico puro e simples.

Em seguida, Dworkin passa a apresentar algumas teorias semânticas do direito, isto é, teorias adotadas por alguns filósofos que identificam os critérios lingüísticos que todos os advogados e juízes seguem para avaliar se as proposições jurídicas são falsas ou verdadeiras. Elas pressupõem que eles realmente estejam de acordo quanto aos fundamentos do direito. Segundo Dworkin, as teorias semânticas mais influentes são as teorias positivistas, que sustentam o ponto de vista do direito como simples questão de fato, afirmando que a verdadeira divergência sobre a natureza do direito deve ser uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas. Dentro das teorias positivistas, Dworkin destaca duas versões: a de Austin e a de Hart.

Acerca de Austin, Dworkin afirma que sua idéia central de que o direito é uma questão de decisões históricas tomadas por aqueles que detêm o poder político soberano, nunca perdeu totalmente sua força sobre a doutrina. Para Austin, o direito consiste na obediência habitual às ordens colocadas por um soberano, que não se submete a ninguém. Sobre Hart, Dworkin afirma que ele refutava a opinião de Austin de que a autoridade jurídica era um fato puramente físico de comando e obediência habituais, defendendo a idéia fundamental de que a verdade das proposições jurídicas depende essencialmente de padrões convencionais de aceitação por parte da comunidade de uma regra de reconhecimento que atribui à pessoa ou grupo de pessoas a autoridade de criar leis.

Dworkin aponta ainda, como teorias semânticas e que são tidas como rivais das teorias positivistas, as escolas do direito natural e do realismo jurídico, mas afirma que se concentrará no positivismo jurídico, pois é a teoria semântica que sustenta o ponto de vista do direito como simples questão de fato e que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empírico, não teórico.

Dworkin expõe e critica, então, as defesas do positivismo resumidas por ele em duas vertentes: a tese do fingimento e a tese do caso limítrofe. A tese do fingimento é mais simples e entende que nos casos polêmicos, como aqueles citados por Dworkin, em que as instituições jurídicas precedentes não haviam decidido expressamente a questão de nenhuma maneira, os advogados e juízes teriam concordado não haver direito algum a descobrir e suas divergências teria sido um debate disfarçado sobre a natureza do direito, pois o público acredita que o direito sempre existe e que os juízes devem segui-lo e não seria conveniente trazer à tona a constatação da inexistência do direito naqueles casos. A tese do caso limítrofe é uma defesa mais sofisticada do positivismo jurídico e admite que os advogados e juízes pensavam estar divergindo sobre o direito, mas na verdade essa divergência seria puramente verbal, pois haveria casos de uso padrão da palavra “direito” e usos limítrofes e nebulosos dessa mesma palavra, e isso explicaria a divergência nos casos difíceis.

Todavia, Dworkin entende que a nova defesa do positivismo é uma crítica muito mais radical da prática profissional do que poderia parecer: a tese do fingimento mostra os juízes como mentirosos bem-intencionados; a tese do caso limítrofe mostra-as como indivíduos simplórios.

Dworkin critica essa defesa do positivismo, dizendo que a lógica que preside essa teoria é o argumento de que a menos que os juízes e advogados compartilhem critérios factuais sobre os fundamentos do direito, não poderá haver nenhum debate sobre o que é direito. Dworkin, então, se propõe a enfrentar esse argumento filosófico, sob o entendimento de que a existência de divergência teórica sobre os fundamentos do direito é real.

Dworkin chama de aguilhão semântico ao argumento que descreveu e que nos leva a ser alvo de uma concepção tosca de divergência, no sentido de que só seria possível discutir algo se aceitarmos e seguirmos os mesmos critérios para decidir quando nossas decisões são bem fundadas. O autor critica esse entendimento dizendo que grande parte das divergências no direito é teórica e não empírica. Para Dworkin, os filósofos adeptos do positivismo preferem ignorar os termos usados pelos juízes e advogados e tratá-los como se divergissem quanto à fidelidade ou reforma do direito, e não quanto ao direito.

Para embasar sua tese, Dworkin nos dá um exemplo imaginário simples de atitude interpretativa, citando uma comunidade cujos membros seguem um conjunto de “regras de cortesia”. Uma atitude interpretativa tem dois componentes: 1) pressuposto de que a cortesia não só existe, mas tem um valor, uma finalidade; 2) pressuposto adicional de que as exigências da cortesia não são sempre as mesmas, mas sim devem ser compreendidas de acordo com a sua finalidade. Dworkin então expõe como a cortesia se modifica, supondo que no início a finalidade da cortesia estivesse na oportunidade que ela oferece de demonstrar respeito aos membros superiores da hierarquia, o que pode mudar ao longo do tempo, passando as pessoas a exigir forma de deferência anteriormente desconhecidas ou rejeitar as formas anteriormente reverenciadas.

Dworkin esclarece que neste ponto ele apresenta uma abordagem teórica particularmente destinada a explicar a interpretação de práticas e estruturas sociais como a cortesia, e, se o direito é um conceito interpretativo, é necessário assentar uma concepção do que é interpretação.

Segundo o autor, a interpretação das práticas sociais é semelhante à interpretação artística no sentido de que ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como entidade distinta delas, atribuindo a ambas a designação de formas de interpretação “criativa”. Essa forma de interpretação é distinta da interpretação conversacional, que é intencional e não causal, atribuindo significados a partir da intenção do orador; e também da interpretação científica, que interpreta fatos não criados pelas pessoas, através de uma explicação causal dos fenômenos.

Dworkin defende uma concepção diferente daquela que tenta insistir que a interpretação criativa é apenas um caso especial de interpretação conversacional, em que se pretende descobrir os propósitos e intenções do autor. De forma inversa, ele defende que a interpretação criativa não é conversacional, mas construtiva. A interpretação das obras de arte e das práticas sociais se preocupa com o propósito e não com a causa; mas esse propósito é o do intérprete e não o do autor. A interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível de forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam. Mas isso não significa que o intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem, pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos.

Falando sobre a arte e a natureza da intenção do autor, Dworkin expõe que a interpretação artística não é simplesmente uma questão de recuperar a intenção do autor se por intenção entendermos um estado mental consciente. A intenção sempre é mais complexa. Há uma concepção muito diferente de intenção, segundo a qual uma intuição faz parte da intenção do artista quando se ajusta a seus propósitos artísticos e os ilumina de tal modo que ele a reconheceria e endossaria mesmo que ainda não o tivesse feito. Isso introduz o senso de valor artístico do intérprete na reconstrução da intenção do artista pelo menos de uma maneira comprobatória, pois o julgamento que faz o intérprete sobre aquilo que o autor teria aceito vai ser guiado por seu senso daquilo que o autor deveria ter aceito. Contudo, para Dworkin, o método da interpretação artística que se fundamenta na intenção do autor é discutível até mesmo em sua forma mais plausível. Muitos críticos afirmam que a interpretação literária deve ser sensível a certos aspectos da literatura, pois as obras de arte se apresentam a nós como portadoras de um valor específico que chamamos de estético. Para Dworkin, a discussão sobre a intenção na interpretação pressupõe, ela mesma, o objetivo mais abstrato da interpretação construtiva, visando tirar o melhor proveito daquilo que é interpretado. Dworkin não afirma que a teoria da interpretação artística com base na intenção do autor seja certa ou errada, mas que, seja como for, essa questão deve se voltar para a plausibilidade de alguma hipótese mais fundamental sobre a razão por que as obras de arte têm valor.

Assim, Dworkin afirma que em nossa cultura a interpretação artística é uma interpretação construtiva. Especificamente em relação à interpretação das práticas sociais, Dworkin adverte que alguém poderia objetar que interpretar essa prática significaria descobrir os propósitos dos outros participantes da prática ou da comunidade que abriga essa prática. A primeira sugestão é mais atraente, mas é excluída pela estrutura interna de uma prática social argumentativa, pois é uma característica de tais práticas que uma afirmação interpretativa não seja apenas uma afirmação sobre aquilo que os outros intérpretes pensam, mas também uma decisão sobre aquilo que o intérprete acha que os outros pensam. Um cientista social deve, portanto, aderir à prática que se propõe a compreender e, assim, suas conclusões não serão relatos neutros sobre o que pensam os membros da comunidade.

Com isso, Dworkin afasta a objeção de que a descrição construtiva da interpretação criativa seria errada, porque a interpretação criativa seria sempre interpretação conversacional. No caso da interpretação das práticas sociais, essa objeção é ainda mais inadequada que no caso da interpretação artística.

Pretendendo refinar a interpretação construtiva como instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social, Dworkin passa a expor as etapas da interpretação, dividindo-as em três: 1) etapa pré-interpretativa, na qual são identificados as regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da prática; 2) etapa interpretativa na qual o intérprete se concentra numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa; 3) etapa pós-interpretativa ou reformuladora, na qual o intérprete ajusta sua idéia daquilo que a prática realmente requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa.

Dworkin apresentou uma caracterização geral e muito abstrata da interpretação, dizendo que esta tem a finalidade de apresentar em sua melhor luz o objeto ou a prática a serem apresentados. Contudo, essa caracterização da interpretação é contestada pelo ceticismo, que entende ser um erro supor que uma interpretação pode estar certa e outra errada. O autor se refere ao ceticismo interno e ao ceticismo externo. O ceticismo interno é aquele que se dá no interior da atividade de interpretação, como uma posição autônoma sobre a melhor interpretação de alguma prática ou obra de arte, ao passo que o ceticismo externo se dá no exterior e em torno da atividade interpretativa. Dworkin esclarece que voltará a tratar mais adiante do ceticismo interno, que é a forma de ceticismo que teme, e que aqui ele tratará do ceticismo externo, o qual insiste em que as afirmações morais ou interpretativas não são descrições que possam ser comprovadas ou testadas e que todas as opiniões sobre um objeto de interpretação são projetadas na “realidade”, e não descobertas dela, ou seja, condena o entendimento de que uma interpretação poderia ser melhor do que as outras. Segundo Dworkin, o verdadeiro ceticismo exterior não ameaça nenhum projeto interpretativo, pois o autor defende que é possível que uma interpretação de uma prática social seja melhor que outra.

Segundo Dworkin, o direito é um conceito interpretativo. Embora cada intérprete tenha suas próprias convicções sobre o “sentido”, ou seja, o propósito ou o princípio justificativo da prática do direito, há uma grande número de forças que atenua essas divergências e conspira a favor da convergência. Por exemplo, toda comunidade tem seus paradigmas de direito que não podem ser ignorados na prática. Também a prática do precedente pressiona pelo acordo.

A dinâmica da interpretação resiste à convergência ao mesmo tempo em que a promove. Certas soluções interpretativas, incluindo pontos de vista sobre a natureza e a força da legislação e do precedente, são muito populares em determinada época, formando paradigmas e quase-paradigmas. Mas, de repente, o que parecia incontestável é contestado; uma nova interpretação é desenvolvida e os paradigmas são rompidos, surgindo novos paradigmas.

Tratando dos conceitos e concepções do direito, Dworkin expõe que o direito não pode florescer como um empreendimento interpretativo em qualquer comunidade, a menos que haja suficiente consenso inicial sobre quais práticas são práticas jurídicas, de tal modo que os advogados discutam sobre a melhor interpretação a ser aplicada aos mesmos dados. Portanto, um filósofo do direito começa seu trabalho desfrutando de uma identificação pré-interpretativa quase consensual do domínio do direito, e com paradigmas experimentais que dão sustentação a seu argumento.

Segundo Dworkin, sua discussão assume que o escopo mais abstrato e fundamental da aplicação do direito consiste em guiar e restringir o poder do governo. Assim, o direito de uma comunidade é o sistema de direitos e responsabilidades que respondem a esse complexo padrão: autorizam a coerção porque decorre de decisões anteriores do tipo adequado. São, portanto, direitos e responsabilidades jurídicas. Essa caracterização do conceito de direito estabelece aquilo que é chamado de “regra” do direito.

As concepções de direito aprimoram a interpretação inicial e consensual que proporciona o conceito de direito de Dwokin. Cada concepção oferece respostas a três perguntas colocadas pelo conceito: 1) justifica-se o suposto elo entre direito e coerção?; 2) se tem sentido que a força pública seja usada em conformidade com direitos e responsabilidade decorrentes de decisões políticas anteriores, qual é este sentido?; 3) Que leitura de “decorrer” – que noção de coerência com decisões precedentes – é a mais apropriada?

Dworkin expõe três concepções antagônicas de direito que ele elaborou como respostas a essas perguntas: “convencionalismo”; “pragmatismo jurídico”, e “direito como integridade”. O autor sustentará que a primeira concepção é a mais vulnerável; que a segunda é a mais poderosa e só pode ser vencida quando nossa esfera de debates se expandir para incluir a filosofia política; e que a terceira é a melhor interpretação daquilo que fazem os juristas.

O convencionalismo oferece uma resposta afirmativa à primeira pergunta. Em relação à segunda pergunta, sustenta que o sentido da vinculação ao direito está esgotado na previsibilidade e na equidade processual. Quanto à terceira pergunta, propõe uma exposição nitidamente restrita da forma de coerência que deveríamos exigir a propósito das decisões anteriores: um direito ou responsabilidade só decorre de decisões anteriores se estiver explícito nessas decisões, ou puder ser explicitado por meio de métodos ou técnicas convencionalmente aceitos. O pragmatismo jurídico é uma concepção céptica do direito e responde negativamente à primeira pergunta, entendendo que os juízes tomam e devem tomar decisões que lhe pareçam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado. Assim, o pragmatismo rejeita a idéia de direito e de pretensões juridicamente protegidas desenvolvida por Dworkin quando este apresentou seu conceito de direito. Em resumo, entende que o direito não existe. Por sua vez, o direito como integridade aceita o direito e as pretensões juridicamente asseguradas. Quanto à segunda pergunta, supõe que a vinculação ao direito beneficia a sociedade não apenas por oferecer previsibilidade ou equidade processual, mas por assegurarem um certo tipo de igualdade entre os cidadãos que torna sua comunidade mais genuína e aperfeiçoa sua justificativa moral para exercer o poder político que exerce. Na terceira pergunta, sustenta que direito e responsabilidades decorrem de decisões anteriores e, por isso, têm valor legal, não só quando estão explícitos nessas decisões, mas também quando procedem dos princípios de moral pessoal e política que as decisões explícitas pressupõem a título de justificativa.

Em seguida, falando da relação do direito e os costumes, Dworkin afirma que a idéia de “moral popular” e de “tradições populares” são distintas do direito. Este direito pertence à comunidade não apenas passivamente, porque seus membros sustentam certas idéias sobre o que é certo e o que é errado, mas como uma questão de compromisso ativo, porque suas autoridades tomaram decisões que comprometem a comunidade com os direitos e deveres que constituem o direito. O direito também é diferente da justiça, pois esta é uma questão que remete à melhor teoria do que é justo moral e politicamente, enquanto o direito é uma questão de saber o que do suposto justo permite o uso da força pelo Estado, por estarem incluídos em decisões políticas do passado, ou nela implícitos. O conceito admite, como concepções igualmente válidas, teorias que insistem que, quando o conteúdo de uma decisão política é de algum modo obscuro, a justiça desempenha um papel na decisão de quais pretensões juridicamente protegidas decorrem de tal decisão. Também permite concepções cépticas como o pragmatismo jurídico, que insiste em que o direito não tem conteúdo próprio. Mas aqui entra em discussão argumentos de modo algum conceituais, mas faz parte do debate interpretativo entre concepções antagônicas de direito.

Dworkin defende que, para nós, o argumento jurídico ocorre em um espaço de consenso aproximado de que, se o direito existe, ele provê uma justificativa para o uso do poder coletivo contra cidadãos ou grupos individuais. O autor trata a doutrina como interpretação e não como análise lingüística, descrevendo o direito como associado estreitamente com a política. Segundo sua teoria, o conceito de direito é constituído por um precário acordo de que o direito oferece, em princípio, uma justificativa para a coerção oficial. Para ele, uma teoria política do direito completa inclui pelo menos duas partes principais: 1) reporta-se tanto aos fundamentos do direito – circunstâncias nas quais proposições jurídicas específicas devem ser aceitas como bem fundadas ou verdadeiras; 2) quanto à força do direito – o relativo poder que tem toda e qualquer verdadeira proposição jurídica de justificar a coerção. As filosofias do direito são em geral teorias desequilibradas do direito: tratam basicamente dos fundamentos e praticamente silenciam sobre a força do direito. As concepções sobre o direito, que são teorias sobre os fundamentos do direito, não nos comprometem com nenhuma posição específica sobre o modo como os cidadãos devem se comportar ou os juízes devem decidir seus casos, mas é um grande exagero insistir, como fizeram os positivistas, que essas teorias não podem ser políticas, que devem deixar totalmente sem resposta a questão do modo como os juízes decidem os casos reais.

INTEGRIDADE

Dworkin aponta dois princípios de integridade política em seu programa sobre o direito como integridade: um princípio legislativo e um princípio jurisdicional. O primeiro convoca o legislador a tornar o conjunto de leis moralmente mais coerente. O segundo demanda que a lei seja analisada e interpretada com coerência. O projeto de Dworkin, ao tratar o direito como integridade, se pauta no princípio jurisdicional. Todavia, informa o autor, sua interpretação do direito como integridade não ignora o princípio legislativo: importante elemento da prática política. Assim, inicia sua proposta acerca da integridade analisando-a sob o aspecto político.

Para o autor, a integridade que propõe é necessária porque não vivemos em uma comunidade política ideal, mas em uma comunidade política comum, onde as autoridades estão sujeitas a reconhecer ou a negar direitos a que a comunidade aspire. Em favor da integridade, o autor diz que a justiça e a equidade podem, por vezes, percorrer caminhos diversos, e que, portanto, não devemos confiar todas as decisões judiciais difíceis à infalibilidade da justiça como equidade ou da equidade como justiça, pois, equidade e justiça não são sempre dependentes.

Se nem sempre são independentes justiça e equidade, conclui o autor que decisões políticas majoritárias, por exemplo, tendem a afetar direitos individuais; sobretudo se a decisão majoritária for injusta. A integridade é proposta por Dworkin em sua tese como um terceiro ideal autônomo, para além da justiça e da equidade.

A integridade, como ideal independente da justiça e da equidade, deve ser invocada, mesmo em sacrifício da justiça e da equidade, quando houver divergência sobre ambas, isto porque os conflitos entre estes ideais são comuns em política. Desse modo, quando justiça e equidade seguem percursos diversos, a integridade é uma terceira via de solução.

A idéia do autor acerca da divergência de princípios é bem marcada quando refere à possibilidade de decisões majoritárias injustas em relação a direitos individuais, momento em que, para Dworkin, a integridade, na sua melhor aplicação, funciona como instrumento de conciliação quando equidade e justiça conflitam. Nesse sentido, quando justiça e equidade apresentam-se divergentes, devem ceder à integridade.

Para mostrar de que maneira a integridade se apresenta como virtude distinta, Dworkin empreende o raciocínio da justiça salomônica, de maneira a perseguir a conciliação de grupos diferentes em bases arbitrárias quando há em questão princípios. Na presente hipótese, quando há conflitos acerca de uma decisão que afeta a toda a comunidade, o autor propõe que a solução para o conflito não deverá derivar de uma solução arbitrária, mas pautar-se em algum princípio coerente. A justiça e a equidade, afirma o autor, não resolvem conflitos – ao menos não sem que uma esteja em detrimento da outra – sem o apelo a uma solução que considere razões principiológicas. Neste sentido, defende o autor, a integridade é um ideal distinto.

Dworkin rejeita decisões conciliatórias. Rejeita-as quando derivam de soluções arbitrárias ou resultam em injustiça, ainda que respeitado o critério da equidade. O autor afirma que a rejeição pelas decisões conciliatórias se justifica quando delas resultam leis que afirmam para uns direitos que são negados para outros. O estado que adota conciliações internas ignora princípios, porque, com os mesmos princípios que invoca para justificar parte de seus atos, rejeita para justificar o restante.  A carência de integridade nas soluções conciliatórias é a carência de integridade principiológica.

Dworkin colaciona exemplos legais da história política americana para afirmar sua recusa pelas leis conciliatórias. A lei da escravidão que Dworkin problematiza identifica o grau de odiosidade de leis que tenham por base decisões conciliatórias.  O autor afirma que quando a comunidade estabelece e aplica direitos diferentes, cada um dos quais coerente em si mesmo, mas que não podem ser defendidos em conjunto como expressão de uma série coerente de diferentes princípios de justiça, equidade ou devido processo legal, a integridade é escarnecida.

Para Dworkin, as decisões conciliatórias, de tão equivocadas, violam a cláusula de igual proteção. A despeito das críticas sobre a igualdade formal que emana da cláusula de igual proteção, o autor insiste que nos processos judiciais, onde se discutiu a cláusula da igual proteção, a igualdade formal se mostrou como importante princípio, vista sob a luz da integridade.

Entendida a integridade como uma virtude política, tratada sob o argumento central de que a integridade resolve conflitos entre justiça e equidade, além de evitar a odiosidade das decisões conciliatórias, Dworkin passa a discorrer atinente á possibilidade de instrumentalização da integridade, questionando se esta é atraente.

Para afirmar a integridade política como um ideal autônomo, insere a defesa da integridade nos limites da comunidade. O argumento para esta afirmação está assentado na comunidade como um agente moral a inspirar o princípio legislativo da integridade, sob o pálio da fraternidade. Assim entendida a comunidade, Dworkin escapa às acusações do pragmatismo de personificação do estado.

Dworkin argumenta no sentido de mostrar que uma sociedade política que aceita a integridade como virtude se transforma em uma forma especial de comunidade, porque legitima o uso da força coercitiva. A coerência principiológica que deriva desse ideal de integridade apresentado por Dworkin, segundo informa, tem positivas implicações sobre a questão da legitimidade do poder, pois a integridade promove – no ideal comunitário do autor – a união da vida moral e política dos cidadãos.

Nessa linha, Dworkin, ao tratar da questão da legitimidade do poder, remete ao importante argumento de sua obra: a relação imediata entre a integridade e a autonomia moral do direito. Dworkin questiona, então, de onde deriva a obrigação política e o dever de obediência às leis. Como resposta importante à questão da legitimidade e de que o estado é uma fonte de obrigação genuína, Dworkin apresenta seu argumento da integridade, como virtude basilar da legitimidade.

Rejeitando as teorias do “acordo tácito” e do “dever de ser justo”, Dworkin diz que seu argumento de obrigações da comunidade é mais atraente para justificar a legitimidade do Estado como um ente que deriva de obrigações associativas. Todavia, o autor trata de um tipo específico de obrigações associativas. As obrigações associativas pautadas na reciprocidade traz consigo o dever de honrar responsabilidades na esfera das práticas sociais que definem grupos e atribuem responsabilidades para seus membros, que deverão ter igual interesse mútuo.

Para Dworkin, uma comunidade é justa quando sua obrigação de obedecer ao direito é uma obrigação associativa. Idéia que aprofunda em sua concepção de fraternidade e comunidade política. Para o autor, uma comunidade política é legítima porque tem condições de tratar seus membros como tendo obrigações em virtude de decisões coletivas da comunidade.

As obrigações principais da comunidade política dependem do tipo de associação fraternal a ser contemplada. Para o autor, o modelo do princípio é aquele em que as pessoas só se tornam membros de uma comunidade política genuína quando aceitam seus governantes por princípios comuns e não apenas por regras criadas por um agente político. Essa comunidade debaterá sobre quais princípios deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, equidade e devido processo legal. É este modelo de comunidade que o autor elege, pois conforma uma sociedade pluralista.

Nesse modelo de comunidade de princípios apresentado por Dworkin reside a defesa do autor pela integridade. Uma comunidade baseada em princípios aceita a integridade porque condena as leis conciliatórias e as leis resultantes de compromissos que não decorram de princípios genuínos. Uma comunidade de princípios faz sustentar a legitimidade das instituições e as obrigações políticas que delas advêm. Ainda: diz que a integridade não teria lugar em uma comunidade perfeitamente justa e equitativa, mas em comunidades reais, onde valores conflitam. A integridade é poderosa nas dimensões da adequação e da interpretação.

Tendo a integridade como a melhor interpretação construtiva das práticas jurídicas, sobretudo nos casos de difícil decisão judicial, o autor trata a prática interpretativa à luz da integridade em dois aspectos: legislação e deliberação judicial, integridade e coerência.  Integridade na legislação limita a ação dos legisladores e de outros partícipes da criação do direito com relação à possibilidade ou não de alterar normas públicas. Quanto à integridade na deliberação judicial, insiste que, à luz da integridade, os juízes devem respeitar o conjunto de normas públicas, porque expressa um conjunto de princípios.

A teoria da integridade de Dworkin preconiza que o legislativo não deverá promulgar leis conciliatórias apenas por preocupação com a equidade, porque estas constituem flagrante violação da integridade, conforme vem discorrendo ao longo do livro. Quanto ao judiciário, o princípio da integridade apenas reafirma o trabalho cotidiano do juiz e indica a este o que deverá reconhecer como direito. Assim, o princípio da integridade é o ponto de partida para as deliberações judiciais.

Quando trata da questão integridade e coerência, questiona se a integridade seria apenas decidir questões semelhantes da mesma maneira. Responde que não. Quando utiliza a estratégia do “romance em cadeia” o autor distinguirá com mais precisão a integridade da mera coerência (decisões atuais orientadas apenas por decisões passadas).

No campo legislativo, a integridade exige que este se empenhe em proteger para todos aquilo que vê como direitos morais e políticos. Deste modo, as normas públicas refletirão um sistema coerente de justiça e equidade.

 A concepção de integridade no direito de Dworkin tem como argumento central a negação do convencionalismo e do pragmatismo jurídico como melhores interpretações para o direito, pois insiste que as afirmações jurídicas sejam opiniões interpretativas combinatórias de elementos voltados para o passado e para o futuro. Rejeita, a partir da integridade, a idéia de que os juízes inventam ou descobrem o direito.

Quando trata da integridade frente ao processo de interpretação, Dworkin diz que os juizes devem identificar os direitos e deveres legais a partir do pressuposto de que foram criados por um único autor: a comunidade personificada. A orientação interpretativa, argumenta Dworkin em favor da integridade, deverá ser norteada pelos fundamentos do direito, pois, segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal. De tal sorte, Dworkin entende que o direito como integridade é mais interpretativo do que o convencionalismo e o pragmatismo.

O direito como integridade se difere do convencionalismo e do pragmatismo porque é tanto produto da prática jurídica quanto fonte de inspiração. A estratégia mental do romance em cadeia ilustra o projeto do direito como integridade como um processo interpretativo-construtivo, conforme se verá no presente estudo.

O direito como integridade não prescinde também do fator histórico, porém, a integridade não exige que todas as etapas históricas apresentem coerência com os mesmos princípios, nem que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma continuidade de princípio com o direito de um século antes, já em desuso. Neste sentido, Dworkin reforça seu argumento de rejeição ao convencionalismo, pois insiste que os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado são insuficientes para fundamentar direitos coevos. O direito como integridade, situado no tempo presente, só busca o passado quando a contemporaneidade determinar.

Para explicar o processo de construção do direito a partir da integridade, Dworkin utiliza o exercício mental do romance em cadeia. A estratégia do romance em cadeia persegue identificar a técnica do direito como integridade, mostrando as relações do direito com o passado e com o futuro para além do convencionalismo e do pragmatismo.

Na metáfora do romance em cadeia o juiz é, ao mesmo tempo, autor e crítico. O juiz que decide um caso atual acrescenta componentes interpretativos à tradição que interpreta. Os juízes futuros, quando se deparam com as modificações feitas pelo juiz imediatamente anterior, além de encontrarem uma nova tradição, acrescentam outros ingredientes interpretativos. Nessa tessitura construtiva, a orientação comum não se limita às normas convencionadas nem a uma aspiração futura que rompa com a tradição jurídica, mas é orientada por um elo comum: os princípios. O direito como integridade em construção, passado e por vir, é, portanto, construído sob uma coerência principiológica.

A interpretação literária com fulcro na intenção é o jogo comparativo que Dworkin pretende transportar para o direito a fim de construir a idéia do romance em cadeia. Na estratégia de Dworkin, o juiz, como construtor de uma obra em cadeia, se deve orientar por critérios para além da opinião e convicção íntimas. Deve ser fiel à macroestrutura que está construindo e aos princípios que a orientam. A coerência do conjunto da obra em construção é a alegoria do direito como integridade, cujo mote são os princípios que orientarão a construção da obra hipotética.

Dworkin analisa o caso da senhora McLoughlin à luz do direito como integridade, partindo da abstração do romance em cadeia. Nessa hipótese, invoca a figura de um juiz hercúleo, a orientar sua interpretação por um delicado equilíbrio entre diferentes atitudes políticas.

Criterioso e metódico, Hércules, ao decidir o caso dos danos morais, deverá se comportar como um meticuloso autor a quem é submetido um romance em curso. Precisa emprestar coesão ao romance. Nesse sentido, constrói diversas hipóteses que orientarão o curso de sua atitude interpretativa e construtiva. O refinamento estético de Hércules dependerá de seu entendimento do direito como um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal. A interpretação de Hércules, à luz do direito como integridade, não deverá decidir o caso dos danos morais como um simples apelo à política, nem como repetição de decisões tomadas por autoridades anteriores.

Para decidir o caso em questão, Hércules deverá superar questões como a compartimentação didática do direito e a adequação pura e simples às normas do passado acerca do caso que interpreta.

Hércules, embora seja um tipo ideal construído por Dworkin, personifica a atitude interpretativa dos juízes que aceitam o direito como integridade na decisão de casos difíceis. Esses juízes deverão encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade.

Dworkin irradia a atitude de Hércules sobre três áreas da deliberação judicial: casos em que se aplica a “common law”, casos que versam sobre a legislação e casos de dimensão constitucional. Para discorrer sobre a prática da decisão judicial na figura de Hércules, o autor adota a teoria funcional. Como funcionalista, deverá compreender a estrutura da justiça para a deliberação judicial sob critérios de adequação e justificação, pois, funcionalmente, deverá considerar que a decisão judicial é a confluência da atividade das diferentes esferas que compõem a justiça.

Sob o ponto de vista da adequação, exige-se que a interpretação se aproxime da origem[5] do direito para tornar-se aceitável. Trata, neste sentido, da supremacia legislativa e da eliminação das convicções íntimas dos juízes em contrasenso com a produção normativa vigente. Pretende-se vencer o problema da discricionariedade. Neste sentido, rejeita a idéia de que os juízes inventam o direito. Todavia, na teoria do direito como integridade, a produção normativa vigente é um limiar interpretativo. É, portanto, de onde o juiz deve partir para interpretar o caso que lhe é proposto. Mas, se restringir-se à norma convencionada, não aceita o direito como integridade. É como se, no romance em cadeia, se limitasse a repetir a atitude das personagens sem dar curso ao fluxo da história.

Ainda que justifique sua decisão tendo em conta a produção normativa legítima, o juiz deverá considerar contingências, para ser fiel à integridade do direito. Deverá refinar as normas do passado em favor de uma análise mais profunda quando os fatos solicitarem esta atitude interpretativa. Nos casos dificílimos, onde houver concorrência de princípios, a integridade deverá funcionar também como instrumento de ponderação para a decisão que não se limite a decisões precedentes. Os princípios de que trata Dworkin derivam também de diretrizes políticas que o juiz deverá considerar para proferir suas decisões.

Dworkin refuta possíveis objeções – de neutralidade política e da univocidade interpretativa – nos casos confiados a Hércules, porque a moral política que orienta a interpretação na hipótese 5 (segundo a qual o direito permite indenização por qualquer dano moral diretamente causado por um motorista negligente, que poderia ter previsto o acidente se fosse razoavelmente sensato) se conduz não a uma convicção íntima discricionária, mas pela convicção de que os valores que sustentam seu estilo interpretativo são fundamentais a ponto de eliminar a concorrência de outras exigências de justiça. Nesse tópico, Dworkin reforça sua proposta de que há uma única resposta correta na teoria do direito como integridade.

Os princípios que orientam Hércules em sua resposta, tendo em conta as hipóteses 5 e 6 formuladas para a solução do caso que lhe é confiado, afirmam a principal diferença apontada por Dworkin entre regras e princípios. Estes, que não se submetem ao jogo excludente das regras, enfrentam a crítica de que, cambiando entre duas respostas corretas para o caso McLoughlin, Hércules estaria contrariando a tese da única resposta correta. Ao contrário, enunciam uma razão que conduz a um argumento e a uma determinada direção. Os princípios, que orientam a dimensão do caso concreto, preenchem o direito de conceito e orientam melhor a ponderação do juiz. A melhor orientação de adequação e moral política conduz Hércules, entre as respostas possíveis, à melhor resposta.

A partir dessa idéia, Dworkin pretende vencer a objeção de que não há, em direito, a resposta exclusivamente correta em casos difíceis: é a crítica do ceticismo interior do direito. Para empreender sua tese, Dworkin diz que quando houver concorrência de princípios – a solidariedade e a responsabilidade, por exemplo – de um determinado campo do direito, não resta implausível uma resposta única e coerente com a integridade. Na tensão de um caso concreto, um princípio deverá se submeter a outro quando preencher a decisão do juiz de maneira menos desastrosa para a vítima e para o Estado. Neste sentido, prevalece a melhor moral política.

Para defender a coerência do direito como integridade das críticas proferidas pela corrente do estudos jurídicos críticos, que afirmam a impossibilidade de uma resposta única do direito em um caso concreto – por conta da contradição entre princípios -, além da crítica de que a integridade resulta de um erro da teoria política liberal, Dworkin argumenta que o projeto do direito como integridade compreende a distinção entre concorrência e contradição de princípios. Com esta distinção, Dworkin pretende enfrentar as críticas à coerência interna e a ameaça ao direito como integridade.

CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS

Ronald Dworkin elabora um discurso interno sobre a hermenêutica jurídica que é bastante compatível com as categorias da hermenêutica filosófica. Embora os textos de Dworkin não sejam muito claros quanto às suas inspirações teóricas, algumas citações esparsas de Gadamer (vg, pp. 63, 67, 69,75) deixam clara a influência da hermenêutica filosófica na concepção do direito como integridade que ele desenvolverá.

O discurso de Dworkin é assumidamente interno e persuasivo, e, nesse sentido, a estrutura argumentativa do texto é muito construtiva, pois Dworkin define três grandes linhas da hermenêutica jurídica (teorias semânticas, convencionalistas, pragmáticas), para contrapor a elas sua concepção do direito como integridade.

Dworkin explicita que a Hermenêutica Jurídica apresenta uma peculiaridade importantíssima, qual seja, permite interpretar o ordenamento jurídico dando-lhe um novo significado que, muitas vezes, não foi almejado pelo próprio legislador. Considera as leis, os fatos e os valores originários e supervenientes ao ordenamento jurídico (princípios). Com isso, destaca que à Hermenêutica Jurídica cabe reconhecer os valores que estão subjacentes à letra da lei e, mais que isto, cuidar para que esses valores continuem direcionados para a causa do homem e da sociedade.

Nesse sentido, Dworkin mostra uma sensibilidade hermenêutica peculiar que dá coerência a seu penssamento com os princípios democráticos e liberais aos quais ele está manifestamente vinculado.

Podemos inferir, com isso, que a Hermenêutica Jurídica só se justifica quando serve à dignidade e à natureza humana, especialmente no caso do ordenamento jurídico brasileiro.

O caráter interno da teoria de Dworkin faz com que ela não se concentre na tensão descritiva entre o que os juízes fazem e o que eles pensam fazer. Em vez disso, ele entende que é preciso buscar a solução correta, e concentra-se na tensão normativa resultante do fato de que os juízes nem sempre fazem o que deveriam fazer.

Com isso, Dworkin acentua que a legitimidade de uma interpretação deve ser medida em termos de uma coerência narrativa, que tenta fazer uma mediação entre a expectativa de segurança e a abertura para o futuro. Esse é o mesmo quadro conceitual da hermenêutica de Gadamer, em que o sentido de um texto é definido a partir da perspectiva interna de um intérprete que não pode se alhear da tradição em que está imerso e que, justamente por isso, não está definitivamente preso às interpretações passadas.

A teoria do direito de Dworkin pode ser entendida como a tentativa de garantir a segurança jurídica através da redução da discricionariedade judicial ao se defender a racionalidade da decisão do juiz, ou seja, a possibilidade de se chegar a uma única decisão judicial correta para cada caso, adotando a solução da distinção entre princípios e regras, entendendo que ambos são mandamentos cuja validade deontológica exprime o caráter de uma obrigação.

Dworkin acrescenta em seu projeto a integridade como um ideal autônomo, ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal adjetivo. Para o autor, a comunidade política está personificada em uma moralidade comum, pautada em princípios que a tornam coerente e unívoca. As decisões jurídicas deverão responder a este ideal de comunidade.

A teoria de Dworkin enxerga a integridade em dois campos da atividade jurídica: na legislação e a integridade na deliberação judicial. A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação de direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas públicas. A segunda requer que, até onde seja possível, nossos juizes tratem nosso atual sistema de normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob asnormas explícitas. Nesse sentido, a atividade interpretativa é um processo de construção do direito, mas não à maneira do pragmatismo e do convencionalismo, porque não deverá ficar adstrito às decisões jurídicas do passado, nem ignorar o passado e o presente e inventar um direito comprometido univocamente com futuro.

Dworkin propõe uma interpretação ubíqua, capaz de construir um direito dinâmico em processo contínuo de desenvolvimento, em sincronia com o passado e o futuro a partir dos referenciais coevos. O raciocínio do romance em cadeia apresenta de maneira minudente o projeto do autor. A metáfora do juiz Hércules, que ajuda a construir o romance em cadeia, apresenta, pela própria referencia onomástica da personagem, o exaustivo exercício que o projeto de Dworkin requer. A teoria da integridade solicita do juiz um trabalho estrutural complexo e abstrato. Diante de um caso difícil, para aplicar a integridade como melhor teoria do direito, há a demanda por um conjunto de estratégias a serem desenvolvidas pelo juiz, a fim de que este não se atenha à letra da norma exclusivamente, nem a decisões meramente pragmáticas. Requer do juiz, também, que não decida arbitrariamente, exacerbando a discricionariedade.

A integridade do direito requer uma atitude interpretativa que atribua, quando houver conflito de princípios, o preenchimento de sentido destes pelo caso concreto. Esta definição de peso dos princípios norteará uma única e melhor decisão para o caso concreto. A sedução expor Dworkin a seus críticos é iminente. Porém, preferimos problematizar a tese de Dworkin frente ao direito brasileiro. Assim, argúi-se: no direito brasileiro, este projeto seria possível? Dworkin não ignora a dificuldade prática de realizar os trabalhos de Hércules. Enxerga o alto índice de demandas judiciais que são apresentadas ao juiz para apreciação em sua rotina. O autor refere à tradição anglo-saxã, menos volumosa em termos de leis do que a brasileira, herdeira da tradição romana. Encontra problemas para sua teoria e não as ignora na tradição jurídica que experimenta. Se analisarmos à essa luz o direito brasileiro, as dificuldades não são menores e o projeto é ainda mais ambicioso.

Dworkin releva a importância do juiz no processo de construção do direito e a necessidade de que este tenha razoável envolvimento intelectual com os casos concretos que lhes são apresentados. Como fazê-lo em um país com o judiciário encharcado de demandas? Como construir o direito a partir de princípios e do caso concreto frente à questão da súmula vinculante e das barreiras impostas, por exemplo, para impetrar recursos em cortes com jurisprudência uniformizada? O projeto de Dworkin nos coloca na pior luz interpretativa, por experimentarmos um direito demasiadamente convencionalista e equivocadamente pragmático; além de um sistema de administração da justiça que inviabiliza uma eficiente prestação jurisdicional, porque dificulta uma análise mais detida dos casos levados à apreciação judicial.

A integridade exige que o juiz exercite a interpretação dos casos jurídicos à luz de princípios até mesmo concorrentes; esta atividade requer uma tarefa realmente hercúlea para o judiciário brasileiro. Cotejada a teoria de Dworkin com o judiciário e o legislativo brasileiro, é inevitável a conclusão de que o direito como integridade não é o direito como experimentamos, mas como ele deveria ser. Um direito ideal, e não real.

         Há os que defendem a motivação da sentença como legitimadora da atividade judicial. Esta defesa tem justificado a atividade do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, quando “legisla” em casos difíceis carentes de normatização e de discussão pelo legislativo. Este argumento não se apresenta convincente frente ao projeto de Dworkin, para quem a moralidade política geral está personificada na atuação das instituições democráticas, cada qual cumprindo suas funções. Esta afirmação se apresenta quando o autor inclui a adequação e a justificação no direito como integridade.

O autor também critica, no projeto do direito como integridade, a compartimentação do direito e o excesso de academicismo nesta compartimentação, que não deveria existir, senão para fins didáticos. Ocorre que a tradição jurídica acadêmica no Brasil, por exemplo, não ensina a compreender o direito de maneira integrada. Esta objeção parece simplória, porém, fácil de confirmar nos cursos jurídicos brasileiro. Nas disciplinas propedêuticas do ensino jurídico essa proposta é anunciada, entretanto, no curso da atividade acadêmica, as disciplinas se fragmentam em compartimentos quase estanques. Os institutos e seus respectivos princípios são pensados como microcampos que não se relacionam. Reflexo da tradição romana, as áreas do direito adquirem “vida” própria e isolada principiologicamente. Os juízes, em regra, são formados a partir desse programa positivo do direito. Para empreender a tarefa de Dworkin, uma atitude importante deveria repousar, em nossa tradição jurídica, primeiro sobre o currículo acadêmico e sobre o ensino jurídico “lato sensu”.

Na proposta de adequação de Dworkin, os casos de difícil resolução que se apresentam diante de qualquer magistrado, quando cambiarem entre duas ou mais interpretações de acordo com as leis aplicáveis, deverão ser orientados por uma escolha racional do juiz, que perguntará qual delas é a mais adequada do ponto de vista da moral política, da estrutura das instituições e decisões aceitáveis pela comunidade. Este é outro projeto distante da realidade jurídica brasileira. A proposta da adequação sugere, ao menos em algum ponto, que a resposta do judiciário em casos complexos deva se pautar no conteúdo legislativo vigente. No Brasil, os casos complexos que são apresentados ao Supremo Tribunal Federal não estão contemplados em leis produzidas pelo legislativo.

Este problema revela uma crise de legitimidade que não tem sido ignorada no direito brasileiro. Na teoria do direito como integridade, ainda que as decisões judiciais sobre casos difíceis se pautam no exercício de Hércules, é difícil defender que as decisões do judiciário brasileiro sobre casos polêmicos, decisivos para os destinos da comunidade política, refletem sob a melhor luz a moral da comunidade personificada. Nesse sentido, uma resposta do judiciário carente de legitimidade não poderá enxergar o direito à sua melhor, mas sob sua pior luz, por atentar à estrutura funcional das instituições que Dworkin também defende em sua tese. O direito como integridade, que enxerga a segurança jurídica para além dos critérios positivistas, e que requer um trabalho exaustivo das instituições democráticas que produzem e legitimam a produção do direito, não vão para além de um ideal a ser alcançado diante dos problemas que experimentamos.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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