Publicado em: 27 de abril de 2025
Quero falar um pouco sobre o texto Artifício e Excesso: narrativa de viagem e a visão sobre as mulheres em Portugal e Brasil, que apresenta um interessante olhar sobre as imagens de mulheres brasileiras e portuguesas, construídas nos relatos de viajantes ingleses que estiveram em Portugal e no Brasil, nos anos finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. A autora do texto é Margareth Almeida Gonçalves.
Para compreendermos o texto de Margareth de Almeida é importante procedermos à leitura de Hanah Arendt, em A Condição Humana, que dimensiona o público e o privado, para analisar a diferença das esferas pública e privada, as quais, segundo sua perspectiva, constituem os dois âmbitos de existência onde se desenvolve a
vida ativa, desde o contexto medieval. Pelo que aponta Arendt, no medievo-cristão, havia uma uniformização no contexto europeu, no que concerne aos hábitos. A confusão entre o público e o privado referenciada por Arendt é um dos ingredientes da medievalidade europeia, em que, dentro dos feudos e castelos, a vida privada orientava os rumos da vida pública.
Feitas as observações preliminares, Margareth de Almeida analisa a construção da imagem de mulheres brasileiras e portuguesas pelos viajantes ingleses que estiveram no Brasil e em Portugal no final do século dezoito.
Para construir o argumento principal de seu texto, a fim de projetar o olhar sobre as mulheres em Portugal e no Brasil, a autora diz que as referidas narrativas de viagem oferecem uma taxonomia da vida social luso-brasileira. Para consubstanciar esta ideia, a autora esboça três classificações a partir dos quais, do lugar em que falam, os viajantes ingleses constroem “um padrão uniforme de perfis e imagens de comportamentos, hábitos e costumes” (ALMEIDA, 2005, p. 613).
Como argumentos secundários, a autora seleciona narrativas de viajantes ingleses, para assinalar, pelo lugar de onde eles falam, a construção discursiva pela alteridade. A alteridade é marcada quando o olhar é lançado pelos viajantes da Europa aquém-Pirineus e o Brasil, então colônia de Portugal, situados à margem da matriz civilizatória européia.
Ainda, para solidificar o argumento principal acerca da credibilidade das narrativas dos viajantes ingleses, a autora distingue os narradores ingleses dos viajantes do século XV, com Jean de Lery, que recorriam ao fantástico para buscar sentido nos eventos que registravam. Os relatos de que trata a autora, referem a narrativas escritas no século XVII, em momento histórico-literário situado no Romantismo europeu, momento em que a prosa de ficção é um marco de ruptura com as narrativas épicas, a confundir o maravilhoso e o racional cotidiano. Não fosse pelo critério da alteridade, a autora poderia ter encontrado sua matéria de estudo nas viagens de Almeida Garrett. Todavia, para solidificar a perspectiva do olhar alter do narrador, as narrativas ingleses são-lhe melhor insumo.
Para construir uma taxonomia, guiada pelo olhar dos viajantes ingleses, a autora elabora três códigos sociais de apreensão da realidade no Brasil e em Portugal pelos viajantes ingleses:
Reclusão: Como argumento central para solidificar a compreensão da situação da mulher luso-brasileira nos relatos dos viajantes, a autora recorre à dicotomia público-privado, bastante diferenciado na domesticidade luso-brasileira, se comparada à domesticidade européia além-Pirineus. E importante, para situarmo-nos historicamente, assinalar que, no século XVIII, em plena ilustração, as Revoluções Burguesas apresentam um quadro social de marcada dicotomia entre o público e o privado, pois o mundo do trabalho impunha outros meios de sociabilidade que não a família. Para compreender este estatuto da sociabilidade luso-portuguesa, importa também referir à queda do absolutismo monárquico, a ocorrer em Portugal nos idos de 1910, de forma tardia, se comparada à Europa além-Pirineus. Pelo conceito de sociabilidade anônima de Phillipe Arèis, a autora traduz a sociabilidade luso-brasileira no contexto em que público e privado se confundem, a indicar que a esfera pública é especialmente perigosa e desprotegida. Nesse contexto, os viajantes informam que a igreja foi um marco de visibilidade das mulheres luso-brasileira no mundo público; daí a reclusão figurar como um dos componentes de análise para Margareth de Almeida.
Indolência: para marcar este traço de distinção entre a sociabilidade luso-brasileira e a sociabilidade europeia além-Pirineus, a autora destaca este “outro problema moral” identificado pelos viajantes ingleses a resultar de uma moral normativa do trabalho, imperante no contexto do século XVIII, alusiva a “normas e valores sociais que escapam aos cânones disciplinares de uma colocação do corpo já motivada por dispositivos de autocontrole na percepção de uma ética do trabalho” (ALMEIDA, 2005, p. 618). Este marco de alteridade das narrativas de Marianne Baille, acerca da languidez e da vida moral frouxa da mulher luso-brasileira, é bem situada no contexto de uma ética do trabalho que vislumbrava negativamente o ócio intelectual luso-brasileiro.
A autora ergue como argumento principal para a construção desta categoria o isolamento requerido pelo advento do indivíduo moderno, a impor um “progressivo movimento de isolamento e interiorização do indivíduo” (ALMEIDA, 2005, p. 622),
Educação: a construção desta terceira categoria de distinção entre os narradores-viajantes ingleses e a sociabilidade luso-europeia que observavam com assombro, pois, do lugar que se encontravam, haviam experimentado a era pós-Gutemberg como importante novo-paradigmático, a romper com o iletramento e ócio intelectual do medievo-cristão. A modernidade burguesa europeia, informa Margareth de Almeida, em que a cultura escrita aponta como direção das mentalidades europeias, elege o hábito de ler e escrever como instrumentos de libertação de um passado percebido como de “obscurantismo” e “barbárie”.
A sociabilidade da mulher luso-brasileira, reclusa ao âmbito da casa e indolente, pelo que as viam os viajantes-narradores ingleses, contrastava com os ideais burgueses da ilustração, pois, nas casas luso-brasileiras, pelo que observou Maria Graham, não havia livros. Quando havia, observavam os narradores-viajantes, não eram consultados. Portanto, a educação feminina: domínio das línguas estrangeiras, conhecimento de literatura nacional, desenho, canto e dança, foi percebida como exceção por Maria Graham em uma segunda visita ao Rio de Janeiro, quando constatou, absurdada, a filha de D. Carlota, na casa de quem as mulheres apresentam o perfil de “educação feminina” alinhado à burguesia europeia.
Maria Graham, narradora-viajante, segundo informa Margareth Almeida, também aponta a artificialidade das mulheres luso-brasileiras quando, no convívio público apresentam extrema artificialidade no comportamento, a ponto de classificá-las como “segunda categoria”. A artificialidade no mundo público é um marco, segundo Graham, de descontinuidade entre a casa e o espaço da rua na vida luso-brasileira, sendo que o mundo público se revela como mundo do artifício: marco de dissonância entre o mundo europeizado, e seus paradigmas de civilização, e o mundo dos trópicos, que não internalizava os parâmetros europeus de civilidade.
A abordagem das narrativas de viajantes são importantes registros históricos de olhares estrangeiros e da perspectiva do outro sobre os modos de vida e de sociabilidade das mulheres em um determinado período histórico no Brasil. O olhar europeu sobre o Brasil é também uma abordagem que nos interessa e nos ajuda a compreender na atualidade de que modo se desenvolvem nossas relações com o antigo colonizador, desde suas estruturas de pensamento até a abordagem do outro/a, que somos nós.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10º ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.
GONCALVES, Margareth de Almeida. Artifício e excesso: narrativa de viagem e a visão sobre as mulheres em Portugal e Brasil. Rev. Estud. Fem. [online]. 2005, vol.13, n.3, pp. 613-628.
CHARTIER, Roger (0rg). A História da Vida Privada: da renascença ao século das luzes. Vol. 3, trad. Hilgard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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