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Para estas efemérides importantes do calendário cristão, as pessoas que comungam recordações- trazem novamente dos corações – desses preceitos, costumam revirar as gavetas da memória. Lá por dentro, onde moram as imagens dos tempos idos, pescam-se lembranças flutuantes à margem do tempo, por onde já se foram, rotos, alguns retalhos de histórias perdidas. Outras lascas de tempo, ainda frescas, embora também antigas, vêm à tona, ora aquecendo, ora resfriando as fibras dos nossos corações.
 
Por estes dias da semana santa, lembro- me de tempos felizes, quando “eu era feliz e ninguém estava morto”, como dizia Fernando Pessoa, de suas memórias de infância, no belo poema Aniversário. 
 
A semana santa, para o meu escaninho de memórias, é uma personificação da pessoa mais religiosa que conheço: minha mãe. Se eu visito as memórias mais pretéritas dos tempos quaresmais, logo vejo-a, orando contrita e sossegada desde o domingo de ramos até a sexta-feira da paixão. 
 
Católica fervorosa, minha mãe dedicou uma parte da formação de seus quatro filhos, dentre os quais sou primogênita, à educação cristã. A semana santa, portanto, era tempo para a imersão na prática dos ensinamentos de minha mãe. 
 
Reservo este espaço especial para colher memórias da sexta-feira santa, do sábado de aleluia e do domingo de Páscoa. Às sextas-feiras santas, lembro-me de minha mãe sempre reflexiva, impondo-nos o dever de guardar aquele dia para a paixão de Cristo, padecendo daquela dor como se fosse presente. Ainda pequenos, éramos proibidos de realizar jogos infantis, correrias e pulos. Dizia-nos nossa mãe: crianças que pulam durante o padecimento de Cristo criam rabos! Eu tremia de pavor! Sobretudo quando, distraída, me pegava a correr ou a saltar um pouco! Era proibido, também, comer carne vermelha. Comíamos peixe, eis que os bifes de carne sangrariam como as chagas de Cristo, se comidos naquele dia sagrado. 
 
De sua cadeira de balanço verde, minha mãe lia a Bíblia e vigiava de soslaio a pequena prole, cuidando para que estivéssemos quietos, expiando junto com ela os nossos pecados, solidários para com aquele que, pendente na cruz, morrera por nós.
 
Vencida a sexta-feira da paixão, rompia-se a aleluia com o sábado seguinte. Para nossa mãe, o sábado de aleluia representava um misto de alegria pela ressurreição de Cristo, com o dever de continuidade das orações em agradecimento por esse episódio da vida do grande redentor. Estranhamente, nossa mãe repetia o costume, trazido não sei de onde, de aplicar palmadas nos pequenos, a fim de romper-lhes a aleluia. Lembro-me bem que ela justificava: é pelas palmadas que não pude aplicar durante a semana santa. Estava paga, então, a dívida de travessuras nossas. 
 
O domingo de Páscoa, em nossa casa austera, não me recordo de representar ovos de chocolates. Minha mãe, muito fervorosa e dogmática em sua agenda cristã, bem cedo ia à missa do domingo de Páscoa, de onde chegava esboçando um semblante amoroso, pela comunhão daquele espírito coletivo que a Páscoa representava, enchendo a nossa casa modesta de amor maternal muito mais doce do que os ovos coloridos. Era contagioso!
 
Quero pensar o dia de hoje, depois de colher episódios tão cálidos da memória, como um domingo especial para praticarmos o amor em sua dimensão fraterna, como irmãos que somos, para  além das fronteiras de quaisquer ensinamentos religiosos. Nós, cristãos e não-cristãos, ateus e agnósticos, viventes sob o mesmo céu, onde a doutrina do amor é um laço firme capaz de nos manter a salvo da fúria, da ira e das paixões humanas destrutivas. 
Boa Páscoa! 

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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