Publicado em: 6 de abril de 2025
Além de um imaginário sobre a tecnologia do século XXI, tínhamos, no século passado, muitas preocupações acerca do mundo do trabalho no século seguinte. O avanço tecnológico da segunda metade do século passado abriu questionamentos sobre a automação da mão de obra e sobre a precarização dos meios de produção, disparando os alarmes da classe trabalhadora para as novas fronteiras da organização dos sujeitos coletivos dessa classe e para a construção da consciência dos sujeitos individuais no ambiente laboral e na vida.
O vocabulário do mundo trabalhista dos séculos anteriores vem sendo substituído por expressões semanticamente novas, e estas expressões traduzem a forma de estabelecer relações laborativas neste novo século. O trabalho digital, por exemplo, é uma realidade deste século e desafia as teorias de valor aplicadas as séculos anteriores. Mas os desafios deste século estão para muito além da mudança de vocabulário, hábitos, forma de organização e remuneração do trabalho.
A regulação global através de pactos firmados pelos estados é, ainda, um marcador importante de algumas garantias éticas sobre o trabalho e sobre o trabalhador. Para a OIT, o trabalho decente é condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Porém, com o avanço das tecnologias de informação e com a fronteira da revolução da IA, além do surgimento de novas tecnologias de automação da mão de obra, a garantia da dignidade da pessoa trabalhadora suscita questionamentos e desafios.
As transformações nas formas de sociabilidade do homem suscitam reflexões em vários ambientes da vida. A arte é um dos ambientes da vida onde as transformações no mundo do trabalho também são pensadas, eis que o trabalho e o ciclo de vida produtiva ocupam boa parte da vida humana.
Estive assistindo à série de TV Ruptura. A série de TV estadunidense de Dan Erickson, envolve uma trama em que cinco funcionários de uma empresa chamada Lumen aceitam participar de um procedimento experimental onde suas memórias pessoais e de trabalho são permanentemente separadas. O processo de ruptura das duas personalidades ocorre pela tecnologia de implante de microchip cerebral.
A serie desperta reflexões sobre temas muito importantes relacionados a este século: os limites éticos para os experimentos com seres humanos, a agressividade dos ambientes corporativos em contraste com os direitos individuais dos seres humanos, a despersonalização do indivíduo no ambiente do trabalho e a supressão da capacidade de negociação dos trabalhadores em face das grandes corporações.
O experimento com seres humanos é um problema ético inevitável para o homem do futuro, de vez que a tecnologia em avanço desbrava essa fronteira. Na série de Tv Ruptura, o experimento envolve implante cerebral de chip, com o objetivo imediato de suprimir a personalidade do experimentado. A Declaração de Helsinque da associação médica mundial regulamenta os parâmetros éticos sobre a pesquisa em seres humanos. A Associação Médica Mundial (WMA) desenvolveu a Declaração de Helsinque como uma declaração de princípios éticos para pesquisa médica envolvendo seres humanos, incluindo pesquisa em materiais e dados humanos identificáveis.
Além da Declaração de Helsinque
adotada em 1964 e suas versões de 1975, 1983, 1989, 1996 e 2000; o Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; o Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, de 1966; a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os
Direitos Humanos, de 1997; a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos,
de 2003; e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2004, no plano internacional, regulam parâmetros para a salvaguarda dos direitos humanos no ambiente da pesquisa.
O artigo 9 da Declaração de Helsinque dispõe que é dever dos médicos que estão envolvidos em pesquisa médica proteger a vida, saúde, dignidade, integridade, direito à autodeterminação, privacidade e confidencialidade das informações pessoais dos sujeitos da pesquisa. A responsabilidade pela proteção aos sujeitos da pesquisa deve sempre recair no médico ou em outros profissionais da saúde e nunca no sujeito da pesquisa, mesmo que eles tenham dado consentimento.
Notemos que essa Declaração interessa ao tópico da pesquisa Médica. Cremos que as disposições da Declaração de Helsinque pode ser aplicadas de forma geral nas técnicas de biohacking por implantes de chips em seres humanos. A terminologia biohacking ainda é pouco conhecida e se refere a incrementos e mudanças na performance biológica dos seres humanos. O biohacking também envolve o uso de tecnologias invasivas, como implantes cerebrais. O objetivo imediato é melhorar a performance do indivíduo em determinados campos ou até armazenar dados. A tecnologia de implantes ainda é incipiente. Não conhecemos precisamente os riscos reais para seres humanos.
No Brasil, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a Lei nº 8.142, de 28 de
dezembro de 1990 e Resolução 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, regulamentam parâmetros éticos para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos.
A série Ruptura, além de tematizar experimento com seres humanos, também acende o alerta para a perda da capacidade de negociação dos trabalhadores frente às grandes corporações. Com a automação do mundo do trabalho, ocorre a redução da oferta de postos para o trabalho humano. Esta redução concorre para a precarização das condições de trabalho e para a desarticulação dos trabalhadores, que acabam se refugiando indiretamente em estratégias como a uberização, já muito frequente. A série Ruptura apresenta a impotência do sujeito individual perante uma grande corporação, que subtrai sua capacidade de organização coletiva e resistência.
Na série comentada, o sujeito biográfico é substituído por uma persona que tem existência biográfica independente no ambiente de trabalho, despersonalizando-se em face de sua biografia fora do ambiente de trabalho.
De forma alegórica, a série desperta a reflexão para a impessoalidade dos ambientes corporativos no futuro e para a crescente perda do poder de negociação dos sujeitos individuais e coletivos de trabalho frente a esses entes poderosos e unilaterais nas negociações de condições de trabalho. A série desperta uma reflexão profunda sobre o futuro das relações de trabalho em uma dimensão na qual a humanidade e a dignidade da pessoa humana carecem de atenção especial profunda.
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