Publicado em: 18 de maio de 2025
O Cambridge Dictionary traz o vocábulo bet como uma palavra da língua inglesa cujo significado é “arriscar dinheiro no resultado de um evento ou competição, como uma corrida de cavalos, na esperança de ganhar mais dinheiro”.
Em 29 de dezembro de 2024, entrou em vigor no Brasil a lei que regulamenta apostas de quota fixa e o “mercado de bets”. Exceto por alguns dispositivos, que tiveram a eficácia condicionada à regulamentação específica pelo Ministério da Fazenda, a jogatina esteve oficialmente regulamentada e ampliada no Brasil. Desde que o presidente Lula sancionou a lei 14.790/2023, que dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa, altera as Leis nºs 5.768, de 20 de dezembro de 1971, e 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto denomina. Assim, revogam-se dispositivos do Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Muita propaganda digital e rumores de abusividade de propaganda têm perturbado a vida dos usuários da internet, desde então.
Estive pesquisando sobre o funcionamento das plataformas de jogos on-line, principal inovação trazida pela lei citada acima, e fiquei assustada com a invasão dessa modalidade de jogatina na vida do povo brasileiro e com o volume da propaganda dessas apostas no cenário digital.
Pesquisei, ainda, informações nos portais oficiais do governo brasileiro sobre a lei das bets e encontrei alguns dados técnicos importantes sobre a tal lei.
Os benefícios da arrecadação de tributos
A lei nova traz a imposição de 15% de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre o lucro líquido dos prêmios. Do total arrecadado com as apostas de quota fixa, 12% são destinados a diversas áreas. 10% caberão à seguridade social, 10% à educação, 36% ao esporte, 1% à saúde, 28% ao turismo e 12,6% à segurança pública. A lei determina a destinação do tributo incidente sobre a renda nessa atividade. O imposto de renda pago pelos apostadores é destinado a serviços públicos essenciais do estado.
A lei determina a forma de fomento do setor esportivo com parte dessa arrecadação, para setor do turismo, para a educação básica e para as entidades da sociedade civil: 0,2% à Fenapaes; 0,2% à Fenapestalozzi; 0,1% à Cruz Vermelha Brasileira; 0,5% para o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol); e 0,4% para a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
Ônus social do Ministério da Fazenda
A lei dispõe que o Ministério da Fazenda definirá os requisitos e diretrizes para autorização e operação das apostas de quota fixa. Isso incluirá políticas e procedimentos para atendimento aos apostadores; prevenção à lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo, proliferação de armas de destruição em massa, corrupção e outros delitos. O MF também terá responsabilidade em promover o jogo responsável, a prevenção aos transtornos de jogo patológico, a integridade de apostas e a prevenção à manipulação de resultados por meio de fraudes.
Suponhamos que a lei das bets continue em vigor, mesmo depois das polêmicas que temos presenciado, sobretudo pelo envolvimento de personalidades públicas com o incentivo às apostas. Ainda assim, no tópico da lei em que compete ao Ministério da Fazenda a responsabilidade para com a proteção do usuário das plataformas de jogos on-line, penso que estejamos diante do ponto fulcral dessa inovação legislativa. Neste aspecto específico, o estado brasileiro atraiu o ônus institucional de fomentar políticas públicas e regulação da forma de divulgação desses jogos, a fim de proteger usuários vulneráveis e evitar fraudes.
A ludopatia
A regulação da publicidade e da propaganda, sobretudo nas modalidades de jogos praticados em plataformas on-line, é uma medida urgente, em um cenário de relatos constante de adoecimento e de endividamento dos apostadores. Pesquisando sobre o aspecto de vulnerabilidades dos apostadores em cena digital, onde a facilidade de acesso e aliciamento via propaganda abusiva é constante é real, encontrei o verbete médico ludopatia.
A ludopatia é classificada como um transtorno psiquiátrico do jogo compulsivo. Trata-se de uma condição psiquiátrica caracterizada pela incapacidade de controlar o impulso de jogar, mesmo diante de um cenário de perdas emocionais e financeiras. Esse transtorno era incluído no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) como um transtorno do controle dos impulsos e compartilha semelhanças neurobiológicas com outros vícios, como o abuso de substâncias. Atualmente a nomenclatura Transtorno do Jogo (Gambling Disorder) é a mais admitida pela versão atualizada do DSM-5, o DSM-5-TR.
Os apostadores que evoluem para uma condição psiquiátrica, mesmo sendo pessoas adultas e capazes, se encontram em condições de vulnerabilidade extrema, inclusive para fins de manifestação do consentimento nessas situações contratuais que envolvem o jogador e as plataformas de apostas. Impõe-se ao estado, que regularizou essa atividade, o ônus de proteger o cidadão usuário de eventuais perdas e do aliciamento ostensivo da propaganda dessas apostas.
A CPI Das Bets
É nesse contexto de questionamento sobre o efeito social das apostas que o Senado brasileiro instituiu a CPI das bets. A finalidade da montagem dessa Comissão Parlamentar de Inquérito é “investigar, no prazo de cento e trinta dias, com limite de despesas de cento e dez mil reais, a crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, além da possível associação com organizações criminosas envolvidas em práticas de lavagem de dinheiro, bem como o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação dessas atividades”.
A Comissão está em funcionamento com a participação do Conar, que regulamenta propaganda no Brasil. Durante esta semana, acompanhei a movimentação da oitiva de influenciadores digitais perante os senadores que integram a Comissão. As oitivas, embora envoltas em um ambiente circense, darão mais transparência à atividade.
Os influenciadores chamados para depor na CPI das bets são personalidades públicas que produzem conteúdo digital e que possuem muito engajamento de seguidores em suas redes sociais. Alguns desses influenciadores possuem contas com mais de 50 milhões de inscritos. Esses influenciadores usam suas redes de contato para fazer a divulgação de produtos e de serviços. Essas pessoas possuem contato direto e intimista com o público que as segue. Os influenciadores digitais compartilham atividades de suas rotinas, no ambiente íntimo de suas casas e de suas vidas, de onde compartilham o que comem, o que bebem, o que vestem e atividades lúdicas, situações em que incluem os jogos on-line, convidando e incentivando os seguidores, que participam de suas bolhas digitais como se amigos fossem, para a prática desses jogos.
Os grandes influenciadores digitais, no Brasil e no mundo, são mentorados para aplicar várias técnicas de persuasão e de manipulação de seus seguidores para a captação de clientela de seu material publicitário: as publi. Muitos desses personagens recebem e oferecem treinamento de técnicas neurolinguísticas e demais estratégias de retórica, comportamento e de persuasão, via mentoria e coaching que, inclusive, também são atividades exercidas por influenciadores digitais conhecidos.
Podemos construir então o seguinte cenário, no ambientes das apostas on-line: de um lado, profissionais treinados praticando técnicas invasivas de venda, via mecanismos agressivos de persuasão e controle, usando o carisma, a confiança e a credibilidade perante seus seguidores para vender os jogos on-line. De outro lado, pessoas doentes ou em processo de adoecimento, com a facilidade de um aparelho celular conectado à internet em mãos, sendo convidadas por pessoas que ostentam um padrão de vida luxuoso a perseguir dinheiro, status e estilo de vida semelhante. Este é o real contexto de vulnerabilidade dos apostadores do varejo das apostas on-line. É para esta conjuntura que as instituições de estado e a CPI das bets devem se voltar.
Os influenciadores digitais estão divulgando práticas juridicamente reguladas, porém, socialmente devastadores e axiologicamente incorretas, pois, a lei mesma impõe ao estado brasileiro, que autorizou esse filão do mercado, a regular a propaganda, proteger os menores de idade e os adultos vulnerabilizados dessa prática tendente ao endividamento e à patologia psíquica. Não julgo importante citar nomes ou deter atenção a essas figuras midiáticas. Da fervura de todos, um único caldo: personagens carismáticas manipulando um auditório para vender a qualquer custo o que os anunciantes expõem, clausulando contratos publicitários milionários.
O cenário da CPI das bets é importante para o escrutínio público do mundo das apostas, para que a sociedade conheça os contratos milionários de publicidade, trazendo à superfície o submundo da indecente “cláusula da desgraça” incluída nesses contratos, pela qual os influenciadores digitais recebem um percentual sobre aquilo que os apostadores perdem nas rodadas de jogos.
Devemos crer que um cenário de ajuste do ordenamento jurídico brasileiro posterior à CPI das bets deverá obrigatoriamente equalizar as partes, propaganda e público alvo, nessa arena desigual, onde o duelo resulta no aniquilamento do orçamento do brasileiro pobre, que é seduzido pelas artimanhas desses flautistas de Hamelin e sereias digitais a investir os tostões minguados do pão de cada dia nessas apostas, cujo lucro seguro e certo é para os vendilhões de fantasia e para os donos da banca.
O estado brasileiro não pode continuar como crupiê de luvas brancas nesse jogo de cartas marcadas.
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