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É emocionante assistir ao filme/documentário/confissão de Bono Vox, um dos integrantes, o mais famoso, da banda irlandesa U2. Gravado todo em p&b, como um monólogo em um belo teatro, acompanhado de três excelentes músicos, conta sua história, seus sofrimentos, sucessos, mas, principalmente, sua relação com o pai, Bob, que se considerava um tenor e que durante a maior parte da vida desdenhou da carreira do filho. A mãe de Bono faleceu quando ele tinha 14 anos e o pai ficou viúvo, com dois filhos. Foi somente quando Luciano Pavarotti convidou para cantar e ele foi levado a Módena para assistir e até conhecer pessoalmente Lady Di que o comportamento começou a mudar. Mas o mais impressionante é a força desse irlandês que apoiando-se em Jesus, pregou o amor durante o embate entre católicos e protestantes em seu país, abrindo o leque para o mundo; encontrando líderes mundiais (veio ao Brasil), falando para surdos, mas na fé que poderia fazer algo. Quando o pai faleceu, começo do ano 2000, veio o golpe mais forte, que o fez refletir sobre a vida e resolver escrever um livro sobre seu percurso. Acho impressionante. Bono não é o primeiro humano a ter embates com os pais e somente depois de suas partidas cair em si em reflexão. Me fez pensar em meu pai. Meu amigo. Meu tudo. Desde os nove anos, passei a conviver mais com ele, que trabalhava de manhã, à tarde e de noite. Aposentou-se de um dos empregos e agora, podia jogar peladas à noite, no Lago Azul, comigo como companhia. Eu aprendia ali a conviver, suportar, ter paciência e sobretudo, a dinâmica de jogar futebol, o que se tornou ainda mais efetivo quando passei a ir a jogos de futebol em que ele trabalhava. Sentava-me ao seu lado, sem poder torcer, fazer barulho, mas o ouvia e via a tal dinâmica do jogo. Aprendi a ler futebol. Fui um de seus primeiros parceiros quando voltou a fazer música. Aposentado das transmissões e programas, passava o dia assistindo a jogos de vôlei, basquete e futebol. Diariamente passava em minha sala de trabalho e conversávamos. Meu melhor texto teatral, genialmente interpretado por Cláudio Barradas e Zê Charone, tem muito desses papos diários. Quando ficou doente, o substituí em A Província do Pará, onde escrevia crônicas esportivas. Um dia, às vésperas de sua partida, estávamos eu e ele, no hospital. Bem, ele não estava mais, realmente, ali. Aproximei-me e audaciosamente, passei a mão em seus cabelos. É algo que ainda hoje, ao escrever, me enche de emoção. Meu pai não era de gestos carinhosos, mas dizia tudo com o olhar. Invadir seu espaço íntimo e passar a mão em seus cabelos foi o máximo para mim. Quando se foi, passei a maior parte do dia resolvendo assuntos relativos ao enterro. Na cerimônia, guardei os sentimentos, o que hoje lamento. Uma semana depois, meu filho contou que sonhara com ele que pedia que todos ficássemos bem, porque ele estava muito bem. Foi aí que desabei. Veio essa saudade que não passa, em pensar como ele reagiria a isso e aquilo. Em cuidar de minha mãe. Mas essa é outra história. Tenho o mesmo nome dele, mas nunca senti o peso disso. Desde cedo ele nos treinou para sermos livres e seguirmos adiante com nossos sonhos. Sinto orgulho de ter seu nome. Somos cinco filhos, quatro jornalistas e uma socióloga. Herdamos o caráter, honestidade e principalmente o gênio criativo. Fui amigo de meu pai, que foi meu tudo. Tive sorte. Cabe-me ser seu filho e honra-lo sempre que puder.

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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