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Há uma crônica da Rachel de Queiroz que narra a visita feita por ela a um homem moribundo, a quem os médicos não davam mais que um mês de vida. O doente definhava a olhos vistos, cada dia mais magro, mais amarelo, com os olhos mais vidrados; ainda assim, surpreendentemente, comportava-se como se nada daquilo estivesse acontecendo, como se a morte não passasse horas seguidas a rondá-lo, rodopiando a foice maldita e assoviando melodias fúnebres.

A crônica chama-se “Morrer”, foi escrita em 1951 e trata do espanto da cronista com a postura daquele agonizante cidadão – “… era de se esperar que a nossa conversa fosse tensa e dramática, e que não cuidássemos naquele breve encontro senão do grande mistério que ele está tão próximo de resolver. Mas não foi assim; estranho, mas não foi. Nenhuma angústia metafísica, nenhuma inquietação espiritual, ou sequer intelectual. O homem não estava de modo nenhum interessado no eterno, continuava apegado ao frívolo, como se ainda tivesse cinquenta anos de vida diante de si.”

O que chamou a atenção de Rachel, presumo, é o fato do doente acostumar-se tão profundamente com a sua realidade a ponto de torná-la comum, ordinária, encarando como corriqueiros e comezinhos fatos que muitos considerariam assombrosos.

Ora, essa me parece uma verdade absoluta, universal. Para o bem ou para o mal o homem acostuma-se de modo tão intenso com o que é rotineiro que deixa de perceber com clareza a relevância, a contundência ou a gravidade dos eventos que o cercam, do meio em que está inserido. Passa a viver anestesiado, como acontece naqueles procedimentos cirúrgicos em que o paciente, sedado porém desperto, percebe o correr da lâmina a cortar-lhe a pele mas não sente dor alguma.

Imaginemos o caso de um funcionário do Vaticano responsável pela manutenção diária da Capela Sistina, ou o de um técnico de som que acompanha os ensaios rotineiros da Orquestra Filarmônica de Viena, ou ainda o de um ajudante de cozinha de um grande e premiado chef. Por certo o primeiro já não se encanta estupefato com os afrescos renascentistas de Michelangelo, Rafael e Botticelli; o segundo já não se enleva inebriado pela potência sonora dos naipes de cordas e metais a reproduzir as sinfonias dos compositores clássicos; e o terceiro torce rosto e nariz para quitutes e acepipes fenomenais que adoraríamos degustar.

Enquanto multidões choram e se emocionam ao ouvir as belas canções românticas de Roberto Carlos, os músicos que o acompanham já não devem suportar a repetição daqueles acordes. Enquanto muitos pagam caro para admirar as magníficas vistas do Rio de Janeiro ou de Paris, os zeladores do Cristo Redentor ou da Torre Eiffel decerto preferem paisagens mais modestas, cansados de tamanha grandiosidade.

É como se a beleza restasse anuviada pelo costume de admirá-la.

Em sentido oposto, teríamos índices ainda mais alarmantes de depressão, melancolia e outras doenças da alma se, por exemplo, os coveiros fossem incapazes de se despir da imensa tristeza que os rodeia diariamente, evitando levá-la para casa, do mesmo modo como se despem de seus uniformes ao final do expediente. Como os legistas poderiam frequentar churrascarias sem abstrair, pelo costume, o objeto da sua labuta? Como os médicos intensivistas conseguiriam levar suas namoradas ao cinema depois de um plantão de doze horas numa unidade de terapia intensiva?

Policiais cumprem arriscados expedientes e comparecem às festinhas infantis da família; carcereiros batem cartões de ponto após um dia de trabalho nas masmorras brasileiras e reúnem-se com amigos para uma cervejinha gelada; motoristas de ônibus recolhem os carros às garagens e ainda têm equilíbrio mental para seus compromissos sociais; conselheiros tutelares dão assistência a crianças submetidas a toda sorte de maldades e sevícias e seguem acreditando na humanidade.

Ao que parece, o costume, a repetição e a banalização do que é (ou deveria ser) especial, anormal ou extraordinário findam por entorpecer nossa capacidade de reação, admiração e indignação. Tanto deixamos de contemplar aquilo que é imensamente belo quanto aceitamos passivamente o que nos devia causar revolta. Soterrados em nossos próprios (e reduzidos) universos, nos desapercebemos do que está à nossa volta.

Provavelmente é isso que nos leva a aceitar sem rebeldia cenários como a Belém em que vivemos, onde a vilania humana aparenta confundir – e portanto tratar do mesmo modo – tudo aquilo que se acumula inconvenientemente pela cidade: os desassistidos, as crianças nos semáforos, os venezuelanos e suas proles, o lixo, o abandono, o descaso e a falta de saúde social.

Talvez estejamos como o moribundo da crônica de Rachel de Queiroz, certo como dois e dois são quatro de que o assunto não lhe dizia respeito: “Será então que ele não sabe? Meu Deus, e se ele realmente “não sabe”? Mas qual, sabe, sim. Conversou com tantos médicos, leu livros, viu outros casos parecidos com o seu. E há de sentir a verdade nos modos dos que o visitam, no choro escondido das mulheres de casa. O que é possível é que, apesar de “saber”, não “acredite”. Olha os seus magros dedos, contempla de soslaio o corpo mais magro ainda por baixo do pijama cor-de-rosa, mas não vê a magreza, não vê a sua liquidação física; o que sente é o sangue ainda morno correndo nas veias, sente é o apetite de vida que não esmorece, e o que enxerga é o próprio vulto vivo — consumido, talvez — mas vivo! E decerto se considera belo e imortal e invulnerável; e uma coisa lá dentro, uma certeza estranha lhe afirma que aquelas previsões fatais são sonhos, que todos estão loucos, que a morte é coisa longíngua e alheia, feita para os velhos, feita para os outros…”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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