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Paulo planejou tudo movido pela paixão. Queria estar lá, participar, extravasar, viver as alegrias e tristezas efêmeras do espetáculo. Tinha esperança de que o domingo terminasse feliz. Chamou a mãe para acompanhá-lo, e ela, tal como fazem todas as mães, dispôs-se prontamente a estar com ele. As mães querem sempre estar com os filhos, isso é coisa de Deus, como bem escreveu Valter Hugo Mãe em seu último romance: “Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar.”

Paulo e sua mãe foram juntos e juntos esperavam regressar, anonimamente, efemeramente alegres ou efemeramente tristes conforme decorresse o espetáculo. Mas Paulo e sua mãe não voltaram juntos e não ficaram anônimos. Paulo e sua mãe viraram notícia, manchete, matéria de jornal. Paulo caído ao chão, sua mãe aos prantos, de joelhos, ao seu lado.

Hoje faz uma semana. Paulo já não é notícia, virou história, tornou-se estatística. Sua mãe já não é notícia, mas seguirá aos prantos, para sempre, de joelhos, só não o terá ao seu lado. Paulo e sua mãe estão prestes a ser esquecidos. Uma semana é tempo demais hoje em dia. Há muitos tempos de um minuto dentro do tempo de uma semana, muitos textos de poucas linhas, e quase nada hoje em dia perdura mais que um minuto ou merece mais que um texto de poucas linhas. Há muitos outros assuntos e espetáculos. O que se tinha a dizer ou escrever sobre Paulo e sua mãe já foi dito ou escrito. Paulo já não está lá, caído ao chão, embora sua mãe lá permaneça, presa no tempo eterno de uma semana que não terminará, tornada estátua de pedra fria numa hora dura que não terá mais fim.

Paulo e sua mãe não deveriam ser esquecidos, não poderiam ser arquivados e não mereciam desocupar as manchetes. Paulo e sua mãe deveriam ser publicados diariamente, poderiam estampar as primeiras páginas dos jornais, mereciam liderar os trending topics das redes sociais e dos portais de notícias. Assim Paulo e sua mãe nos lembrariam a todo momento, esfregando nas nossas faces sem cessar, o quanto somos boçais, bárbaros, abjetos e imorais. Paulo e sua mãe atestariam repetidamente, inundados de razão, que falhamos como raça, fracassamos como povo e malogramos como nação.

Paulo já não pode ir com sua mãe a outros espetáculos. A mãe de Paulo talvez nem queira mais ir a espetáculo algum. Paulo morreu, foi assassinado, levou um tiro no pescoço no estacionamento do Estádio Jornalista Edgar Proença, ao final de um jogo de futebol válido pelas finais do Campeonato Paraense de 2024. Paulo tinha vinte e nove anos. Sua mãe não tem mais idade, sobreviverá confinada no tempo desse dia infeliz, como a dormir e despertar num looping temporal infinito.

O suposto atirador apresentou-se à polícia. Ele se chama Evangelista. Paulo, que tinha nome de apóstolo, teria sido morto por um sujeito que se chama Evangelista. Prenúncio do fim dos tempos, quem sabe. Anúncio de um apocalipse que temos vivido cotidianamente no Brasil, no Pará e em Belém. Indício de que a vida humana se torna cada vez mais irrelevante, como irrelevantes têm se tornado os valores, as virtudes e os princípios éticos, morais e religiosos.

Paulo e sua mãe foram as vítimas da vez. Ele condenado a deixar a vida aos vinte e nove anos; ela condenada a seguir na vida depois de enterrar um filho. Quem serão os próximos? Quem a bestialidade humana pendurará em seus estandartes macabros para então festejar nossa falência social? Quem de nós se transformará em alegoria da tragédia nacional?

Somos uma gente que se mata à saída de estádios de futebol. Pouco resta a dizer sobre quem somos.

Paulo vai virar um minuto de silêncio se alguém se lembrar de sugerir essa inutilidade incapaz de nos redimir da culpa que a todos nós pertence. Para sua mãe esse silêncio vai durar bem mais que um minuto. Presto a ela, publicamente, minha mais profunda e sincera solidariedade.

Deus nos proteja de nós mesmos…

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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