Caímos como patos, feitos de bobos, batendo no peito e bazofiando garganta plena nossa imodesta arrogância. Não vimos e não percebemos, ocupados que estávamos com as nossas próprias razões, mas fomos todos constituídos idiotas, massa e argamassa de manobra, bonecos de ventríloquos que nada têm a dizer, fantoches nas mãos daqueles que há décadas partilham o poder e compartilham “en petit comité” as gordas e opulentas benesses que dele escorrem.
Ao invés de sermos nós, o povo, a observar e fiscalizar o que fazem eles, os tecnocratas posseiros do poder e dos cofres públicos, aceitamos de bom grado que sejamos nós contra nós mesmos; acatamos como cordeiros que tenham plantado e fomentado em nosso meio as sementes do ódio; estamos prontos para nos digladiar sem trégua, rompendo laços fraternos e vínculos familiares, instaurando celeumas e animosidades irreversíveis, enquanto eles se fartam e refastelam num banquete lauto e obsceno para o qual não fomos, não somos e jamais seremos convidados.
Este é o Brasil de hoje, um espetáculo cínico e melancólico que em campo tem os resultados previamente combinados, de modo que todos possam jactar-se vitoriosos, mas que deixa as arquibancadas em clima de guerra fratricida. Nesse cenário, enquanto as torcidas rivais exasperam-se numa batalha feroz e infinda, atentas apenas aos argumentos que as distanciam, os protagonistas arranjam-se fraternalmente, ficam com todo o pão e nos deixam a tomar conta do circo em combustão.
Onde foi que nos perdemos? Em que momento caímos no engodo que prepararam para nós? Como é possível estarmos cegos diante de armadilhas tão mequetrefes e elementares? Não éramos assim, caminhávamos na mesma direção, ainda que para alguns o caminho não fosse tão íngreme e pedregoso, mas de uns tempos para cá resolvemos nos dividir ostensivamente, como se água e óleo fôssemos, esquecendo que divididos somos mais frágeis e muito mais vulneráveis.
Quem nos vê conclui que não somos mais um único povo, uma só nação; que mais nos assemelhamos a hordas de bárbaros ensandecidos comandadas por cegos, hostilizando-se mutuamente sem sequer saber quais os motivos, entorpecidas por discursos vazios, demagógicos e egoístas, absolutamente iguais no conteúdo ainda que diferentes na forma ou nas cores.
Nessa dicotomia, nessa incapacidade de diálogo, nessa falta absoluta de respeito e tolerância, vamos nos apequenando e acovardando, como a desistir de nós mesmos. Perdemos força, discernimento e resistência, aceitando passivamente que resolvam por nós quais serão os nossos destinos. Somos as cento e trinta crianças de Hamelin, hipnotizadas pelos acordes de flautistas que nos trancafiam em cavernas enquanto os aristocratas tomam para si a cidade indefesa, limpa de ratos e deserta de infantes.
É “O mundo do avesso”, como bem o batizou o escritor luso-angolano José Eduardo Agualusa num texto publicado no final do século passado, incluído em “A substância do amor e outras crônicas”, livro editado originariamente no ano 2000:
“Viver num mundo como este, virado do avesso, não exige apenas enorme coragem; requer, sobretudo, inesgotável paciência e uma lucidez inabalável. Recordo-me, a propósito, de uma estória que minha avó gostava de contar: certo dia caiu uma chuva perversa sobre uma aldeia de camponeses e todas as pessoas atingidas por ela enlouqueceram. Apenas um homem não tinha saído nesse dia para trabalhar no campo, porque estava indisposto, e assim foi ele o único que manteve o juízo. Não demorou muito tempo para compreender a dimensão da sua desgraça: vinha um e cuspia-lhe no rosto, vinha outro e dava-lhe uma paulada, chegava um terceiro e ria-se dele. Ao fim de poucos dias, desesperado, o homem lançou-se a uma poça de água.”
Mais adiante prossegue Agualusa: “As pessoas que conhecemos já não são as pessoas que nós conhecemos, assegurou-me uma amiga. Olhamos para eles e estamos a ver os nossos amigos, gente afável, sensata, com quem convivemos a vida inteira. Mas depois começam a falar conosco e percebemos logo que aquelas não são as pessoas que conhecemos. São outras, roubaram-lhes a alma, foram tocadas pelo dragão da maldade.”
“O Dragão da Maldade, a Chuva-Que-Traz-a-Loucura. Podíamos também chamar-lhe Guerra, mas Guerra, aqui, teria de ter um entendimento mais vasto e mais profundo do que o singelo conceito de confronto armado. Esta Guerra cresce na escuridão dos espíritos, como um tumor – ou como um alien, sim, como o alien que se apoderou de Sigourney Weaver. Esta Guerra alimenta-se ao princípio de pequenos rancores, de equívocos menores, depois cresce, prospera no caos e cresce mais, alimenta-se da inveja, da ambição, do ódio, até se transformar finalmente num monstro terrível, ansioso por romper a alma que lhe serviu de útero e saltar cá para fora. E é como no filme. Não se pode deter o processo: mais cedo ou mais tarde, ele salta.”
É preciso deixar de ouvir os flautistas para sair da caverna e retomar a cidade. É preciso apaziguar os opostos, reunir os extremos, tolerar os dissonantes. Talvez assim nos seja possível retomar as rédeas e assumir o controle.
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