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Todas as pessoas encontram em suas primeiras experiências o norte de suas vidas ou o trauma destas. Vivenciar momentos e tirar ensinamentos de todos os ângulos é mais que um aprendizado. É a história da própria vida.

Aos onze anos, morando em Belém e estudando em um colégio de freiras, o Instituto Dom Bosco, pude logo observar naquele imponente e acolhedor colégio uma coisa interessante. Como já tocava meus primeiros acordes ao violão, percebi que nas missas da capela da escola os cânticos eram todos “à capela”, ou seja, sem acompanhamento. Muitos eram os cânticos litúrgicos que naquele lugar santo a freira responsável pelos ensaios ensinava, com um olhar penetrante e ameaçador.

Irmã Florência, uma freira que veio do Amazonas, reunia duas qualidades muito evidentes para quem convivesse com ela por anos a fio, como foi o meu caso. De ar austero, morena, de traços indígenas, eu via por algumas vezes a pontinha dos cabelos negros, como os de uma Caiapó, que às vezes saltava da parte superior do “hábito” que lhe recobria a cabeça. Ela nunca andava rápido ou lento. Por ser altamente ligado em ritmos, a cadência do andar da freira me despertava tranquilidade e calma pois fosse para se dirigir à capela ou fugindo de um incêndio, seu ritmo de andar era o mesmo. Deus me perdoe ter observado tanto aquela freira, mas aquela figura meio santa e meio estranha me causava também, além da calma, medo.

O crucifixo prateado, sustentado por uma corrente achatada, brilhava por sobre seu “hábito”, que de tão branco era capaz de iluminar a noite mais escura. Cuidadosamente passado e engomado, lembro que, ao andar, aquela vestimenta dançava como se voar fosse e eu sempre procurava seus pés, calçados numa alpargata preta, para ter certeza de que ela não estava flutuando, pois era a arrepiante impressão que eu tinha.

Eis que num dia qualquer, no ensaio da missa que seria celebrada no dia de Nossa Senhora Auxiliadora, vinte e quatro de maio, a Irmã Florência, como diz o paraense, “do nada” vira-se em minha direção e naquela tranquilidade hebdomadária fala com altivez:

  • Salomão, já que você toca violão, teremos seu acompanhamento doravante nas missas.

Eu olhei para trás para ver se ela estava falando com outro Salomão que não fosse eu, haja vista eu nunca ter dito a ela que tocava. Mas ela sabia. Depois imaginei que sabendo que minhas irmãs haviam tocado num conjunto chamado “Serenata Azul” na mesma escola não foi difícil ela descobrir meu digamos, “talento”.

Mas com a mesma altivez da pergunta veio a resposta que saiu de minha boca, a essa altura branca, devido à pressão baixa em que meu corpo deveria estar, nos meus cálculos oito por quatro.

  • Irmã, eu não tenho violão elétrico nem guitarra.

Entrei em pânico. Mas estava certo de que aquele argumento me tiraria da situação de tocar em público pela primeira vez. Não era bem o fato de tocar em público, mas na minha cabeça a possibilidade de queimar no fogo do inferno caso eu tocasse um acorde errado.

Irmã Florência, infalível como Bruce Lee, disse:

  • Crianças, aguardem! Vou à sacristia buscar um instrumento no armário do Padre Grismond. Só quero ouvir a respiração de vocês. Eu que tinha asma nem respirei pra não fazer barulho.
    Grismond era um padre italiano que morava no Colégio do Carmo e rezava as missas aos domingos na Capela do Colégio Dom Bosco.

Ao passar pela cortina de fitas vermelhas e brancas que separava a capela da sacristia, após eternos dez minutos, surge a Irmã Florência com um case de guitarra cor de rosa desbotado, e uma caixa valvulada da mesma cor. Era uma guitarra Gianini original. Acho que a primeira guitarra que foi fabricada pela empresa italiana. As cordas ainda estavam atadas ao instrumento, mas muito enferrujadas. Cheguei a pensar que o instrumento havia pertencido ao próprio Dom Bosco de tão antiga que era.

A irmã ligou a caixa, que demorou alguns minutos para esquentar as válvulas e conectou o cabo da caixa à guitarra. Um som alto e pipocado quase mata a Irmã Elizabeth que estava no último banco da igreja e praticamente morava ali e por usar óculos escuros ninguém sabia se ela olhava pra gente ou estava dormindo. A guitarra funcionou como um milagre. Irmã Florência colocou a alça da guitarra em meu ombro e disse:

  • Toque!

Rezei para aparecer um Elixir Paregórico pois sabia que iria necessitar. A música tocada já estava na cabeça e não hesitei em harmonizá-la na hora. Todos começaram a cantar “Era festa em Bodas de Canaá” alegres e espantados com o coleguinha tocando a guitarra. Porém, o pior aconteceu. No minuto seguinte ao tanger a guitarra com os dedos trêmulos, senti um choque elétrico que me jogou para trás e bati com a cabeça na parede. Quase perco os sentidos pois o juízo eu ainda não tinha. O choque veio e passou. Percebi que se encostasse em alguma coisa ou em alguém eu sentiria novamente o choque elétrico. Para minha surpresa e constatação de que tudo que está ruim pode piorar, chega para ver o ensaio quem? Padre Grismond. Passa por mim e diz com sua voz rouca e grossa:

  • Que bom! Temos um guitarrista!

E passou a mão no meu ombro! Quase fomos a óbito os dois; Irmã Florência com sua calma e irritante alegria ao nos ver pulando, falou:

  • Viva! Vejam esse exemplo de alegria salesiana.

Felizmente a Irmã Elizabeth que estava no fundo da igreja teve a salvadora atitude e desligou a tomada que estava conectada à caixa de som.

Padre Grismond fez o sinal da cruz na minha cabeça e saiu apressado.

No dia da missa Pe. Grismond me acenou de longe, não me cumprimentou como de costume e rezou a missa.

Nunca mais toquei naquela guitarra de Dom Bosco que me fez acreditar ser definitivamente o violão meu melhor e mais seguro instrumento.

Salomão Habib
Salomão Habib é violonista, compositor, concertista, palestrante, escritor, pesquisador, professor e contador de histórias. Membro da Academia Paraense de Letras, tem seis livros publicados. É o maior pesquisador da obra e vida de Tó Teixeira e tem 8 DVDs e 46 CDs gravados, um na Alemanha. Já se apresentou na Argentina, Portugal, Cuba, Venezuela, Bélgica, Suíça, Itália e Alemanha. É autor de mais de 450 peças musicais, idealizador e coordenador do projeto Cantarolar, reconhecido pelo Unicef.

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