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Ao deixar o Exército brasileiro, onde serviu por bravos 35 anos como músico trompetista da Banda de Música do 2º Batalhão de Infantaria de Selva, o 2º BIS, meu pai, o Subtenente Raimundo Dantas, continuou seu ofício de músico em um pequeno grupo de militares da reserva, ex-pracinhas como ele, que serviam ao 26º Batalhão de Caçadores, situado ali na antiga Avenida Tito Franco, hoje, Avenida Almirante Barroso. Nunca entendi bem o termo caçadores. Na minha visão de criança eu pensava e me perguntava: será que os soldados caçavam nas matas do 2º BIS para obter o almoço dos Coronéis e Generais? Era uma indagação infantil, mas confesso que nunca cheguei a uma conclusão sobre o termo “caçadores”.
Por falar em almoço, meu pai saía para os ensaios da Bandinha do Dantas, uma banda ou conjunto musical e chegava para almoçar por volta de 14h30. A essa altura todos na casa já haviam almoçado e minha mãe então, servia os pratos prediletos do velho Dantas: sarapatel, sarabulho, caldeirada de curimatá, porco assado ou cozido de carne com legumes variados e banana chorona, eram os pratos preferidos.

Comia em silêncio, pensando no que iria contar após o almoço, já esperávamos também silentes o momento da garfada derradeira e em seguida o trago da água gelada num caneco de alumínio quase amassado, mas infalível na exorbitância da aparência suada. O caneco era retirado do congelador já com água, religiosamente 20 minutos antes para que aquele iceberg no centro pudesse se formar.

A toalha da mesa de um saudoso quadriculado e desbotado nas bordas e por vezes as rosas desenhadas tatuavam as pernas de quem se demorasse no apetite. A mesa da sala de jantar ficava numa posição estratégica. Da cabeceira, onde meu pai sentava, ele via à esquerda um corredor longo, de assoalho de acapu e pau amarelo, uma verdadeira estrada onde as casas eram os nossos quartos. Ao final do corredor uma varanda e a sala principal; lá ficava um espelho enorme que fazia o ambiente, que já era grande, ficar ainda maior. À direita, meu pai via a segunda cozinha, onde Dona Nazaré, minha mãe, fazia as frituras e assava os quibes, a área do tanque e a portinhola do quintal próximo a uma sorridente goiabeira.

No quintal viviam os patos, picotas, galos, galinhas, dois jabutis que nos revisitavam de cinco em cinco anos e ainda tinha o Preto, um gato que, sempre falo, pensávamos ser a última reencarnação de São Francisco, e finalmente a Bolinha, uma linda cadela malhada com bolinhas amarelas na barriga. Todos viviam e conviviam pacificamente naquele território imensamente pequeno para os adultos e hermeticamente grande para as crianças como eu aos 11 anos. Minha mãe sempre adotou muita gente. Eu tinha tantos irmãos, acolhidos por minha santa Mãe que era comum eu conhecer no almoço um novo irmão ou irmã. Sem demérito a nenhum outro, o mais estranhamente amado e querido era o Josafá. Josafá era um menino que veio do Marajó. Meu pai costumava dizer que quando ele nasceu foi ele quem deu o tapa no médico e o médico chorou. Dizia também que ele era tão valente e apressado ao mesmo tempo que era capaz de colocar o pó do café na boca e chacoalhar água fervendo na boca. Ao mesmo tempo Josafá acordava cedo aos domingos para ter mais tempo para não fazer nada.

Ao terminar de almoçar, meu pai colocava a babuje no prato para os bichos. Não existia ração. Ou melhor existia sim, mas meu pai dizia que aquilo não alimentava os bichos e toma-lhe babuje, resto de comida.

A pata favorita do papai era a Fon-fon, tinha os olhos amarelos de manhã e verde a tarde. A noite a gente achava que ficava branco, mas só depois a gente descobriu que ela fechava os olhos e o branco era da pálpebra. Meu pai tratava a Fon-fon com tanto carinho que despertava ciúmes na Bolinha. Era comum a cadelinha se tremer (talvez de raiva) ou de amor incondicional, toda vez que o papai carregava no colo a Fon-fon que cresceu e se tornou uma bisonha patarrona.
Um belo dia meu pai chegou e qual foi a surpresa! A Fon-fon havia colocado doze ovos. Seis cor de rosa, três azuis e três verdes. Não conhecia o “Animal Planet”, caso contrário teria telefonado para ir uma equipe lá em casa.

Meu pai preparou uma chocadeira feita com lã do casaco da Dona Tereza, uma anciã solitária que morava perto de casa e vivia esquecendo seus casacos. Minha mãe ficou desesperada aquele confisco da indumentária, mas meu pai só pensava no bem-estar da Fon-fon.

Saia para ensaiar e quando voltava, mesmo com fome, primeiro ia ver se estava tudo bem com a pata. Todos os animais pareciam entender a preferencia e meio que se renderam ao favoritismo patônico do papai.

Eis que em uma bela tarde,
(Pai) – Nazaré!
Um grito alto e grave ecoou pelo perfumado bairro do Reduto.
(Mãe) – O que é Dantas! Queres me matar? O que foi
(Pai) – A Fon-fon! (voz embargada)
(Mãe) – Morreu? (Voz de mármore frio)
(Pai) – Não! Nasceram três patinhos vem ver que coisa mais linda!!

Dos doze ovos nove goraram e três nasceram para a felicidade plena e indescritível de meu pai que a partir dai passou a alimenta-los quase que com mamadeira para que crescessem fortes e sadios.

As semanas foram passando e aqueles floquinhos de ouro logo começavam a ganhar contornos mais longilíneos, mas ainda pequeninos o bastante para caberem na palma da mão.

Tudo ia bem até que uma semana depois do nascimento, minha mãe chamou o Josafá, o dito Josafá, e disse a ele que colocasse a babuje do nosso almoço para a Bolinha e para os patinhos. É claro e óbvio que ambos tinham seus comedouros. Porém Josafá, na pressa para ir jogar bola na Doca, chamou os patinhos que vieram num balé lindo de que faria Clara Pinto chorar de emoção e na mesma pisada chamou a Bolinha que a essas alturas já nem tinha mais as bolinhas na barriga, tamanha era a fome da cachorra. Ele colocara a babuje para os patinhos na tigela da Bolinha!. A tragédia aconteceu.

Por terem sido chamados por primeiro os patinhos começaram a bicar antes a babuje; quando a Bolinha chegou e olhou aquela “palhaçada” (é o que ela deve ter pensado), na mesma hora só teve tempo de dar um latido rosnado forte e assustador, atingindo com uma fatal mordida dois patinhos que imediatamente vieram a óbito e o outro ainda se debatia mas logo deu o último suspiro. Minha mãe ao ver aquela cena disse:

  • Josafá! Diabo do inferno! Olha o que tu fizeste! O Dantas vai te matar.
    E o Josafá retrucou nervosamente:
  • Não fui eu Dona Nazaré foi a Bolinha!
    Minhas irmãs sempre explicaram para a mamãe que “diabo era do inferno” que aquilo era um pleonasmo. Mas a mamãe não queria saber dessa fuleragem e ficou enlouquecida. Meu pai ia chegar em 30 minutos.

Mamãe ordenou que Josafá limpasse aquele sangue e desse um jeito de sumir com os corpos dos patinhos para que o papai não visse. A desculpa que a mamãe arranjou era muito esfarrapada pois ela tinha decidido falar que eles fugiram de lá voando. (?)
A Bolinha, mais antenada que o Josafá, se enfiou embaixo de um sofá de napa vermelha que ficava no porão. Ninguém achava a Bolinha.
Meu pai chegou.

O almoço nunca foi servido tão rapidamente como naquele fatídico dia. Tudo para não dar tempo de o papai ir ver os patinhos e a Fon-fon. Almoçou, bebeu água gelada em seu caneco de alumínio, comeu uma fatia de melancia e uma banana prata. Tudo era silencio na casa. Dava para ouvir o barulho da grama crescendo no quintal. O silencio só era quebrado quando o tremulo corporal da bolinha no porão fazia vibrar o velho sofá.

Acabou, pegou o prato e se dirigiu para colocar a babuje para os patinhos. Nesse momento, minha mãe como um ninja, avançou e disse:

  • Não! Deixa que eu coloco.

Meu pai colocou as mãos sobre a mesa para empurrar a cadeira e se levantar, mas antes disso olhou para a direita, para o fundo quintal, franziu o cenho e falou:

  • Nazaré! Que diabo são aquelas três cruzes ali no quintal? Parece calvário!!!
    A pressão da mamãe foi a vinte por treze nessa hora! Papai se levantou e escavacou o chão e lá estavam os corpos ainda moles dos três patinhos. Josafá a ponto de desmaiar de nervoso falou:
  • Eu quis encomendar a alma dos bichinhos para eles não ficarem no inferno do diabo que a senhora fala Dona Nazaré.
    O papai correu atras do Josafá com o primeiro galho de goiabeira que ele encontrou. Josafá se desviou. Depois entrou na dispensa para pegar Neocid que a mamãe colocava nas nossas cabeças para matar piolho e começou a apertar freneticamente a lata num pedaço de pão para matar a Bolinha, tamanho era seu desespero. Conseguimos retirar a lata. Bolinha já estava lá na Cremação nessa hora. Na mesma pisada meu pai correu para o telefone e falou baixinho com alguém. Depois desse telefonema tudo se acalmou e a mamãe conseguiu fazer um pai ir para o quarto.

Respirávamos aliviados quando uns quarenta minutos depois o Senhor Manuel, o açougueiro da Frimapa, um antigo açougue de Belém, disse do portão para minha mãe que foi atende-lo sem saber do que se tratava:
-Dona Nazaré, o Tenente me contratou para matar e desossar um animal. O que é? Porco ou carneiro?
Minha mãe desmaiou.

Salomão Habib
Salomão Habib é violonista, compositor, concertista, palestrante, escritor, pesquisador, professor e contador de histórias. Membro da Academia Paraense de Letras, tem seis livros publicados. É o maior pesquisador da obra e vida de Tó Teixeira e tem 8 DVDs e 46 CDs gravados, um na Alemanha. Já se apresentou na Argentina, Portugal, Cuba, Venezuela, Bélgica, Suíça, Itália e Alemanha. É autor de mais de 450 peças musicais, idealizador e coordenador do projeto Cantarolar, reconhecido pelo Unicef.

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