Antes, nas últimas horas crepusculares, quando a luz lilás anunciava a chegada da aurora, um sol dourado, às vezes rubicundo, enchia a manhã de cores e tragava de um só gole toda a escuridão.
O dia claro, translúcido, deixava ver, do horizonte, o mais distante, aqui no pulmão profundo da floresta amazônica, na cidade que chamamos de pérola do Tapajós, onde o ar costuma ser puro e diáfano, para não perturbar o caleidoscópio que se abre desde as primeiras horas da manhã até o sol se acomodar por dentro das linhas do poente.
Agora, desde que o fogo kafkiano começou a engolir a floresta, o fog apagou todas as cores do dia, que agora é gris na cor e na emoção.
À noite, as estrelas piscam tímidas e até a lua se escondeu por detrás de um véu denso de fumaça.
A luz lilás que anuncia a aurora e encerra o crepúsculo se amofinou por dentro do nevoeiro branco, que embota e esconde o horizonte e sufoca toda a gente.
É horrível procurar a linha das águas de cor indecifrável do Tapajós lá adiante, quando tudo foi borrado pelo fog misterioso, enchendo de angústia o lugar da alma, antes, morada do êxtase de estar aqui, sobre o manto sagrado e verde da floresta.
De onde vem o fogo?
Vem de cima, lá do planalto?
Quem é o piromaníaco?
Não se sabe.
São muitos!
É crime sem castigo.
Não é Dostoiévski; é Kafka.
É O Castelo de fogo.
Ou sabe-se, mas, sabe-se lá!
O nevoeiro de fumaça, como no romance O Nevoeiro, de Stephen King, é um prenúncio do terror que sufoca os habitantes deste paraíso, apagando as cores e deglutindo com paredes de chama voraz o manto majestoso que veste a terra.
Há incontáveis dias a fumaça, que denuncia queimadas misteriosas pelos arredores da cidade, tem apagado as cores do dia e sufocado os habitantes deste, até então, paraíso de ar puro.
As autoridades locais na questão climática já se pronunciaram em sinal de alerta, demonstrando que o IQAr (índice de qualidade do ar) local está perigoso para quaisquer grupos humanos.
O poder executivo local decretou estado de emergência e solicitou reforço dos entes federados maiores. Isto representa a fragilidade do sistema local de gerenciamento ambiental. É um ponto de inflexão da crise.
Enquanto o fogo kafkiano se alastra e não cessa, vamos perdendo a respirabilidade do ar e a beleza das cores neste lugar.
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