Inicio hoje uma nova série de crônicas no portal: minhas “Cool Memories”, com causos familiares e historinhas da vida quotidiana. Esta série vai se revezar com a “Uma história leva à outra”. Neste primeiro texto, agradeço pelos votos de bom aniversário, sempre generosos, contando sobre as confusões em torno do meu nascimento, ocorrido há 56 anos, na data de ontem, 12 de junho.
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Por alguma razão colocaram, na cabeça oca da minha família, que eu nascera constipado. Sugeriram que eu não vingaria. Atribuíram-me pulmões fracos, mente revolta, coração de pombo e intestinos de papel. E isso fora o sangue aguado, o septo dobrado, o prepúcio fechado e a porra dos calcanhares ajarreteados. Fui retirado à fórceps e por isso consideraram que alguns milhares de neurônios eu devesse ter perdido. Fui sacudido e apalmadado. Aspergido de água gélida, massageado, passado de mão em mão, olerificado e consubstancializado com a trânsfuga sábia do cônego da Trindade, o padre Cardoso da Cunha Coimbra, vizinho no Lago Azul e amigo da família. Ao mesmo tempo, fui praticamente desacreditado pela tia-avô Odila, freira apocalíptica, que ocupava bom espaço, no quarto, com seu imenso chapéu de cornetas, típico das Vincetinas, as Filhas da Caridade. Tia Odila achou por bem me retirar do quarto antes que minha mãe passasse mais mal do que estava passando mas que foi bloqueada em meio a esse sequestro, de modo que eu, recém nascido, fui passado de mão em mão até estar de volta ao seio materno.
O caso se passava na maternidade Dalmázia Pozzi, na rua João Balbi, entre as travessas do Generalíssimo Deodoro e do Almirantíssimo Vandenkolk – ah, as ruas de Belém, tão propensas ao drama quanto o era minha família -, em frente à escola da professora Poranga Jucá, bairro do Umarizal, cidade de Belém (a algumas dezenas de metros de onde hoje resido). Haviam me dado o endereço correto, mas eu custava a acreditar. Antes de vir ao mundo tinham me avisado que minha família era dada ao espanto, ao drama e à imaginação galopante, mas era demais… Ao que me recordo desse dia, desse meu primeiro dia, eu estava perfeitamente bem de saúde, embora ligeiramente constrangido.
Busquei assinalar que tudo se tratava de um exagero e que, embora o fórceps tenha sido, de fato, foda, eu já havia superado a situação e estava de boa, pronto para o cristão perdão e para ser quem seria, se acaso permitissem. Porém, a pantomima prosseguiu. Minha pobre mãe estava desfalecida e meu jovem pai decidiu-se a escrever um poema, que dedicou, vejam só, à minha memória. Sim, como se eu já fosse morto. Como se eu fosse um velho amigo seu.
O poema que meu pai fez em minha memória chamava-se Pranto pelo Filho Morto e esse absurdo, embora fosse de boa lavra, foi destruído mais tarde por minha avó, cada vez mais perplexa quanto à imaginação do seu filho.
Formou-se uma junta médica. Julgaram que eu estava ficando rubro; depois tinto e, mais tarde, pardo. Bom, creio que eu apenas tomava minhas cores, mas aquele povo era muito, muito doido. E de repente alguém soprou no meu rosto – o que me provou imenso desconforto e me fez protestar, evento que, ao olhar de minha futura madrinha Lia, outra tia-avó, constituiu um sinal de que eu lutava por minha vida.
Ato contínuo, passaram a me observar, emocionados, considerando que minha cara feia e os movimentos de braços e pernas que eu fazia mostravam que eu estava lutando por minha vida.
A esse momento passaram gelo nos lábios roxos de minha mãe e lhe aplicaram uma injeção azulada, imensa, nas veias. Recordo que muitos a abanavam e que ninguém atendia aos apelos e depois às ordens furiosas da enfermeira-chefe, que exigia que todos saíssem do quarto porque nós dois, minha mãe e eu, precisávamos de ar.
Depois de muito refletir percebi que, em relação a mim, o problema todo era que eu não chorava. Esqueci de fazê-lo. Antes de vir, bem me haviam recomendado que não fosse estranho.
“Não esqueças de chorar. Faze-te de sonso. Chora e mexe os braços, como se fosses um muçuã arrevirado. Sobretudo não sejas descuidado das aparências de ti que esperam. Respeita as tuas máscaras!”
Pois é. Eu havia esquecido de tudo isso. Mas também, com tanta novidade, com tanta criatura maluca e interessante, como é que eu podia me concentrar em ser quem eu devia? O mais difícil, quando se vêm ao mundo com um pouco de curiosidade, é ter que se adequar às identidades interpostas.
Bom, mas o fato é que mal tive tempo de me aperceber dessas recomendações e um novo acontecimento se passou em minha jovem vida: irrompeu no ambiente a minha tia-avó Osvaldina, afastando toda a barreira humana que nos cercava e que, com sua voz estridente, berrou:
“Me deixa passar!”
Avançou em nossa direção e, decidida e triunfal, lançou, sobre minha mãe e sobre mim, um jato de água fedorenta.
Era água-benta.
Para nos salvar, empenhou-se em trazer, afinal, só aquilo que podia nos salvar: água benta. Ao menos a seu juízo – evidentemente coetâneo ao de Deus-Pai, nosso criador. Ela estava sumida havia meia-hora e alguns a julgavam derrotada e triste diante dos fatos, mas eis que de repente volta, com a solução de meus problemas, com a minha salvação.
De minha parte, embora comovido pelo esforço inaudito de minha querida tia, recordo que levei um susto desmensurado e que, por essa razão, me pus a chorar.
Era o que queriam.
De repente, consideraram que eu sobreviveria e foram se afastando, repentinamente muito contentes, prontos para festejar, porque eu era o primeiro neto de todas aquelas famílias, a alegria e o susto da casa. Foram se afastando e dando volume de oxigênio, enfim, para que minha mãe pudesse se recompor. E esqueceram de mim, deixando-me em paz durante uma boa e deliciosa meia-hora.
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(A imagem é do meu batizado, basílica de Nazaré ainda em 1968. Meu avô Oscar, o padre Coimbra e o cônego da basílica não aparecem na foto porque uma imensa confusão os envolveu, momentos antes e os três estavam quase se estapeando por trás das belíssimas portas que aparecem na imagem e do silêncio das velhas fotografias de família – um dia eu conto…)
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