0

O Paraná da Dona Rosa não é Yasnaia Polyana nem Ademar Ayres do Amaral é Leon Tolstoi. Guardadas as devidas proporções, entretanto, ele introduz, com este saboroso livro, uma nova toponímia na geografia universal. (…)
O Paraná da Dona Rosa é uma das muitas ruelas de água entre duas ou mais avenidas aquáticas, que se multiplicam na maior bacia hidrográfica do planeta. Tomou esse nome porque a dona Rosa foi “a mais poderosa mulher que existiu no lugar”. Não eram muitos os poderosos do paraná, mas eles eram, de fato, muito poderosos. Depois de se ter notabilizado como um dos maiores produtores de cacau do Baixo-Amazonas, o Paraná da Dona Rosa, com a decadência desse cultivo, se tornou “um ajuntamento importante de grandes fazendas, a maioria delas nas mãos do coronel Joaquim Gomes do Amaral e de seus descendentes”. Fazendas como a dos Amaral havia a São Bartolomeu, a Aliados, a Salva-Vida, a São Nicolau. Eram universos próprios, quase auto-suficientes, que se comunicavam conforme suas regras e seus códigos especiais.

Ademar, neto do coronel maioral, reconstitui esse mundo particular, original, interessante. Outros dos seus parentes podiam ter-se dedicado a essa tarefa. Os patriarcas, que geraram suas descendências no local a partir do final da primeira metade do século XIX, trabalharam duro para que seus sucessores se educassem onde melhor conseguissem. Sucederam-se os doutores, as carreiras brilhantes e os títulos. Mas também o crescente distanciamento dos lugares onde seus umbigos foram plantados.
Neste livro, Ademar refaz esse vínculo, que o tornou ponte entre Óbidos e Santarém, as duas principais fontes de civilização na região, e o projeta para todos nós, beneficiados pela leitura do seu livro. Nele, há histórias e personagens da melhor literatura, exatamente porque forjados na mais autêntica realidade. Como Joaquim Gomes do Amaral, dono de lancha a vapor numa época em que esse tipo de embarcação “era um privilégio de poucos endinheirados”. Ou o tio Adalberto Amaral, senhor da lancha Santa Teresa, tão potente que venceu a porfia com o navio Rio Mar “o paquete mais veloz da frota da Amazon River”. Este, “o último representante e talvez o mais carismático de uma incontável dinastia de coronéis que teve início no século dezenove com a cultura do cacau”, define-o Ademar.
Ao final da leitura, fica a sensação de prazer que uma boa narrativa, com bons “causos” e excelentes observações, sempre nos deixa. Mas também uma série de sensações sobre esse mundo, que não apenas foi despovoado da sua gente, mas até mesmo sofreu perdas físicas, causadas tanto pela natureza, que já roeu – pela erosão – mais de dois terços dos 40 quilômetros de comprimento que o Paraná da Dona Rosa possuía, como pelo próprio homem. A natureza costuma compensar seus danos. O que faz a mão humana, mesmo quando age buscando melhorar suas condições de vida, não oferece a mesma segurança. A vida era melhor quando por ali só havia fazendas, povoados, quilombos e nativos, ou agora, com a penetração dos grandes projetos e do “progresso”?
(Lúcio Fávio Pinto, no Prefácio do livro de Ademar Ayres do Amaral, que recebi ontem mesmo, assim que saiu da gráfica, com gentil dedicatória do autor.)
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

Ausência do Estado

Anterior

Déjà vu

Próximo

Você pode gostar

Comentários