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Estou passando uns dias em Portugal, terra que tanto adoro e de onde vem parte de mim. Meus bisavós paternos e minha avó materna eram portugueses e mudaram-se para o Brasil, tal como o fizeram muitos dos seus patrícios, para fugir das guerras e mazelas da Europa do final do Século XIX, início do Século XX. Visitar a Terrinha, portanto, de algum modo, é visitar as origens.

Desta feita resolvi adentrar o coração lusitano, atravessando a Ponte 25 de Abril rumo ao Alentejo, às suas famosas aldeias, panos de fundo de tantos dos livros pelos quais guardo imenso afeto. Entre Espinheiro, nos arredores de Évora, e Monforte, às proximidades de Elvas, passei por lugares incríveis, recantos de um Portugal que não se fecha ao futuro mas que é ciente do valor do seu passado.

Eu dirigia o carro e as estradas pareciam levar-me às páginas de Levantado do chão, (Saramago), Aparição (Vergílio Ferreira), Madrugada suja (Miguel Sousa Tavares), Galveias e Almoço de domingo (José Luís Peixoto) ou ainda Jesus Cristo bebia cerveja (Afonso Cruz), numa impressionante sucessão de imagens que, embora inéditas aos meus olhos, eu já havia encontrado nos textos desses mestres da literatura lusófona.

As descrições que fizeram das paisagens, das sensações e da gente alentejana, pacata, trabalhadora e amistosa, eram tão plenas de talento, tão permeadas de amor pela terra natal e verdade, que causaram em mim a sensação de chegar a lugares que eu já conhecia, muito embora jamais os tivesse visitado antes. Algo como um dèjá vu motivadopelo que andei lendo nos últimos tempos. Não ter estado nesses locais até então tornou-se apenas um detalhe de menor grandeza, um fato da vida a desafiar um fato da arte.

E aí, por conta disso, fui levado a pensar no poder da literatura, no que ela representa e, o que é mais angustiante, naquilo que se tem cobrado dela ultimamente, na minha modesta opinião de forma injusta.

Se buscarmos a mais elementar definição de literatura, encontraremos em Aristóteles que se trata da arte de imitar ou representar a realidade através das palavras. Muitas outras estão à disposição, mais rebuscadas e complexas, cuidando inclusive das suas divisões ou gêneros – o lírico, o épico e o dramático, acessíveis a qualquer tempo nos googles da vida, mas por enquanto não será necessário, eis que o conceito do filósofo grego nos basta.

Ora, se a literatura se presta a imitar ou representar a vida real, é impossível dissocia-la dos fenômenos sensitivos humanos, dos vícios e virtudes que nos são comuns, das alegrias e tristezas que vivemos, do bem e do mal de que somos capazes e, sobretudo, em especial, das angústias e aflições que nos maltratam, afinal na tradução destas é que a arte alcança seu ápice, torna-se única e inigualável. Nada é tão esplêndido e maravilhoso como veículo ou espelho das nossas tragédias e infortúnios quanto a arte.

Em sendo assim, é preocupante observar posturas que insistem em plastificar a literatura, em torná-la insípida e inodora, mero panfleto a serviço de ideias nem sempre corretas, no mais das vezes equivocadas e envenenadas pelas suscetibilidades extremas que sustentam o conceito do politicamente correto. 

Se algo magoa, se algo fere ou incomoda, que a literatura silencie a seu respeito, que finja não existir ou que o desconstrua integralmente, que o cancele, para usar uma expressão em voga. Aliás, não basta que essa almejada esterilidade, essa pretensa pureza, esse suposto respeito às diferenças se limite à produção literária contemporânea; urge também extirpar da história tudo aquilo que a atualidade já não tolera, ainda que isso implique em apagar registros essenciais à compreensão da sociedade e da sua evolução ética.

Basta ver, por exemplo, as revisões radicais propostas em obras de Monteiro Lobato, sob o pretexto de estarem eivadas de preconceito racial, desconsiderando o contexto histórico da época em que viveu o criador do famoso Sítio do pica-pau amarelo.

Não quero aqui, de modo algum, desmerecer as lutas justas e necessárias de movimentos sociais legítimos, longe de mim, mas não posso deixar de externar meu temor quando vejo ultrapassados limites que considero perigosos, fomentando teorias que subjugam traços essenciais da identidade de um povo, como é o caso da língua, para criar bobagens absurdas e descabidas como os tais pronomes neutros.

Acerca disso tudo, Ana Bárbara Pedrosa escreveu recentemente um importante artigo chamado A literatura tem de ser um gatinho fofo?, publicado na revista eletrônica A Almanaque (www.almanaquearg.com), do qual destaco alguns excertos:

“De repente, o maior perigo que a literatura tem é o de ofender. Noutros tempos, temia-se que não servisse para nada – não no sentido de não ser funcional, instrumental, numa sociedade, mas no de poder não criar impacto. Escrever e não criar um baque, eis o que aterrorizava quem se dedicava à incompreensível mania de inventar histórias.

Mas então chegou o século XXI, e com ele, em simultâneo, o medo das palavras e o desejo de que sirvam para amansar egos e tranquilizar a vida. Para isso, ao invés de uma técnica aprimorada, de uma capacidade de, com palavras, entrar em todos os recantos, há uma mania catequizadora de quem diz que há recantos que não podem ser tocados. Que há recantos que podem cutucar a sensibilidadezinha de alguém. E, nisto, o discurso deixa de servir para dizer, transformando-se per se, independentemente do seu conteúdo ou do seu propósito comunicacional, numa possibilidade de se mostrar apoio a X ou Y, de se dizer que se está do lado de uma luta, ainda que ninguém perceba o que é que está no ringue.

Tenho um fortíssimo fraquinho pelo poder que as palavras têm, pela capacidade, se manejadas com mestria, de serem um tiro no alvo. Um coxo não corre melhor por eu lhe chamar pessoa com limitações motoras, um cego não vê a parvoíce que para aí ainda por eu lhe chamar invisual. Tenho um amigo que tem uma irmã deficiente. Até ele, que a amou desde a nascença, encontra o outro lado da vida quando diz «Tenho uma irmã deficiente». De repente, chega a censura benevolente, bem-intencionada, mesmo que nunca tenha lidado com deficiência alguma. Zás, ali vão eles: «Não queres dizer “pessoa com deficiência”?». Não, não quer. Para quê? Não se intui que a irmã é uma pessoa? Ia ser o quê? Um vaso?

(…) A língua esterilizada parece querer mudar a vida, mas, em vez de a enfrentar, embeleza-a e extirpa-a do seu cerne, fingindo que mudou alguma coisa. Neste sentido, surgiram recentemente os leitores da sensibilidade, uma espécie de censores prévios das publicações. Apresentam-se nomeando todas as suas maleitas, disponíveis para encontrarem o que pode ferir alguém da sua «comunidade». Isto vai longe ao ponto de pegar em livros já publicados. (…) Parece absurdo ter de o dizer, mas recuou-se até à tábua rasa, e por isso tem de ser: a literatura não é uma política pública, não existe para ser inclusiva ou exclusiva. Existe porque é uma descoberta em pleno – e se não for para descobrir ninguém vai perder energia a escrever. E, sobretudo, não existe para um fim predeterminado por meia dúzia de brilhantes cabeças que decidem a sós que o mundo precisa da sua extensa bondade – e que só eles para trazerem a maravilha ao mundo.”

A literatura, portanto, não é rival daqueles que buscam o aprimoramento da sociedade por meio do combate aos preconceitos e à intolerância. A língua portuguesa também não é. Muito ao contrário, ambas são armas poderosas a serviço da ética e da justiça, do respeito e da inclusão, e não precisam ser lobotomizadas ou seviciadas para que estes ideais nobres sejam atingidos.

A literatura precisa arder como merthiolate, inobstante alguns queiram transformá-la num inofensivo mercurocromo. A vida não é feita apenas de contos de fadas com belas princesas que despertam com o beijo do príncipe encantado. Nela também há espaço para a beleza que a arte extraí do desespero. Basta lembrar de Alberto Caeiro, um dos pseudônimos de Fernando Pessoa, para quem era preciso compreender que a infelicidade é natural:

Se eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe um paladar,

E se a terra fosse uma coisa para trincar

Seria mais feliz um momento…

Mas eu nem sempre quero ser feliz.

É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,

E a chuva, quando falta muito, pede-se.

Por isso tomo a infelicidade com a felicidade

Naturalmente, como quem não estranha

Que haja montanhas e planícies

E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo

Na felicidade ou na infelicidade,

Sentir como quem olha,

Pensar como quem anda,

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica…

Assim é e assim seja…

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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