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Se você é estudante universitário ou servidor público, já olhou à sua volta e prestou atenção em quantos negros estão ao seu lado? Indígenas? Quilombolas? Pessoas com Deficiencia? O famoso teste do pescoço nunca falha. E o resultado todos e todas bem sabemos qual é.

Por óbvio que o ideal seria que tivéssemos em nosso país um sistema educacional público nos ensinos fundamental e médio de excelência, fortalecido e de qualidade, que disponibilizasse igualdade de oportunidade para todos e todas, independentes de origem, raça ou classe social. Mas a realidade é bem diferente, como aponta o famoso teste.

A Constituição Federal estabelece que todos são iguais perante a lei. Mas é inegável, como diz aquela célebre frase que virou música, que temos “uns mais iguais que os outros”.

Já vem de décadas a superação do mito da igualdade meramente formal prevista constitucionalmente. Caiu o pano da falácia de que bastaria oferecer as vagas que os de melhor desempenho nas provas serão aprovados e a isto se chamar de justiça. Não é. Justamente pela desigualdade de oportunidades. O conceito puro e isolado de meritocracia não realiza a verdadeira democracia do ponto de vista material (real).

Por isso, é necessário, como ensinam os mestres, reconhecer as desigualdades existentes, e por isso mesmo tratar desigualmente os desiguais, ou seja, criar regras especiais e específicas para pessoas e grupos historicamente marginalizados para que possam ingressar nesses mesmos espaços, visando alcançar exatamente a igualdade material. As chamadas ações afirmativas

Constatando-se, tanto nessa simples experiência cotidiana quanto em pesquisas com alto rigor científico e de credibilidade a imensa desigualdade de oportunidades no Brasil no acesso ao sistema educacional de nível superior é que após muita articulação e luta, foi editada em 2012 a lei 12711, que estabeleceu as cotas no acesso a educação pública de nível superior, determinando, entre outras regras, a fixação de percentuais de vagas a serem reservados a alunos e alunas oriundas das escolas públicas, além de percentuais para candidatos negros (pretos e pardos), Pessoas com Deficiência e indígenas.

Esta lei, que acaba de completar dez anos, produziu efeitos revolucionários em nossa sociedade.

Segundo dados oficiais do Inep, estima-se que mais de 1 milhão de estudantes tenham ingressado nas universidades por meio do sistema de cotas entre 2012 e 2022, considerando alunos oriundos de escolas públicas e com determinada faixa de renda (cotas sociais), assim como candidatos negros, indígenas (cotas raciais ou étnicorraciais), além de PCDs.

A Lei de cotas serviu de modelo e inspiração também para a fixação de cotas no serviço público, pelas mesmas motivações que se deram no ensino público superior. Também as universidades privadas abraçaram a ideia. Hoje se vê até mesmo empresas privadas realizando processos seletivos exclusivos para contratar pessoas Negras ou com Deficiência.

O Interessante é que sendo entendido como a concretização do princípio da igualdade, as universidades publicas, privadas e o serviço público em geral não ficam amarrados aos critérios estabelecidos na lei, podendo inclusive ampliar essa política afirmativa e inclusiva.

A Defensoria Pública do Estado do Pará recentemente estabeleceu sua política de cotas na vanguarda, alterando sua legislação e por ato do Conselho Superior, reservando 40% das vagas em seus concursos públicos e processos seletivos para reserva de candidatos e candidatas negros (20%), indígenas (5%), quilombolas (5%) e Pessoas com Deficiência (10%), já tendo resultados concretos dessa política, ingressando em suas fileiras mais representantes desses seguimentos, levando a diversidade e democratização interna.

O Conselho Nacional de Justiça, desde a resolução 203/2015, estabeleceu o percentual de 20% das vagas para negros e negras, e desde então vem constantemente aperfeiçoando sua política, com a última alteração em 2023 prevendo regramentos para o funcionamento da comissão de heteroidentificação.

A Universidade Federal do Pará foi pioneira nesse processo. Em 2005 aprovou a regulamentação do sistema de cotas da instituição, que começou a vigorar a partir da versão 2008, fixando em 50% a reserva geral das vagas a candidatos oriundos das escolas públicas, sendo que 40% delas são reservadas para cotistas autodeclarado negros ou pardos. A partir de 2010 a universidade passou a criar duas vagas em cada curso para vestibulandos indígenas, e a em 2013, duas vagas em cada curso para candidatos quilombolas.

Claro que por ser obra do ser humano, é imperfeita e merece sempre evoluções. Não à toa que a propria lei previu a necessidade de sua revisão quando aproximasse o fim de sua vigência.

Diante da necessidade dessa revisão, acaba de ser aprovado o Projeto de Lei nº 5.384/20, sancionado pelo Presidente da República em 13 de Novembro e convertido na Lei 14723/23, que prorrogou a validade do sistema de cotas por mais dez anos e assegurou principalmente os seguintes avanços:

– Estabeleceu que as regras não se aplicam apenas no ingresso no nível superior, mas também nos cursos de pós graduação; Previu expressamente a reserva de vagas (cotas) para as populações tradicionais quilombolas; Nas cotas reservadas a pessoas de baixa renda, adequou o limite para pessoas que ganhem até um salário mínimo por cabeça (per capita); Estabeleceu que candidatos e candidatas inscritas na reserva de vagas que preencherem todos os requisitos primeiramente concorrerão às vagas da ampla concorrência, e caso não atinjam os índices de aprovação na regra geral, aí sim passarão a concorrer na reserva de vagas das cotas. Isso evita distorções indesejáveis.

Sem sombra de dúvidas, a política de cotas transformou-se em um processo fundamental de inclusão social e econômicos de grupos historicamente alijados dos espaços de saber e de poder.

Muito há a ser feito para o resgate de dívidas históricas para que possamos ser um verdadeiro país democrático. A continuidade e constante aperfeiçoamento da política de cotas é uma delas.

E continuemos fazendo o teste do pescoço. É revelador.

Esse é um texto de educação em direitos contendo opiniões pessoais do autor

Bruno Braga Cavalcante
Defensor Público do Estado do Pará, Pós Graduado Lato Sensu em Direito Público e Privado, Especialista em Gestão Pública, Coautor de obras jurídicas e articulista.

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