Semana passada falei sobre Elisinha Coelho, se bem lembram. O que não sabem, possivelmente, é que essa grande cantora brasileira, nascida em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, em 1909, filha de um tenente e de uma jornalista e escritora, a interessantíssima Acy de Carvalho, nome central da “seção feminina” de O Jornal, do Rio de Janeiro, foi mãe do jornalista Goulart de Andrade. Tudo gente crítica, tudo gente sensível, tudo gente boa demais.
De Elisinha Coelho, recomendo escutarem sua gravação de “Ciúme de Cabocla”, toada Josué de Barros gravada com acompanhamento de Rogério Guimarães e Jacy Pereira nos violões (Disco Victor 33.444-B, matriz 50308-1, gravação de 11-06-1930), “Praga”, samba de J. Aymberê, com luxuoso acompanhamento da orquestra Victor Brasileira, sob a direção de João Martins (Disco Victor 33.561-A, matriz 65402-1, gravação de 09-03-1932) e uma música que minha avó sempre cantava para mim, variação do tema popular imemorial, não confundir com esta, “Capelinha de Melão” (samba de Amélia Brandão Nery, Disco Victor 33.322-A, matriz 50341-1, gravação de 21-06-1930).
Em 2008 recebi Goulart de Andrade em Belém e, devendo tratar de ações de divulgação do estado do Pará, lastimo dizer que não resisti em ocupar a maior parte do nosso tempo, sobretudo em longo almoço na orla de Icoaracy (lugar de Belém já referido na crônica da semana passada), conversando sobre sua mãe e sobre a Rádio Nacional, destacando o papel pioneiro de Elisinha na indústria musical brasileira e, mais que isso, conversando com ele sobre as sensibilidades nacionais e sobre o papel de algumas mulheres na desestruturação e consequente reelaboração dessas sensibilidades. Lamentavelmente, alguém nos esperava, para uma entrevista, e nossa boa conversa atrasou por umas duas horas a importante agenda alheia.
O que me leva, por sinal, a lembrar de outra mulher, que entra nas minhas prestações a grandes pessoas humanas: Maria José de Castro Rebello Mendes, a primeira mulher a entrar no quadro de funcionários do Ministério das Relações Exteriores, depois de uma luta jurídica que merece ser lembrada, porque sintetiza os aspectos mais abjetos do patriarcado brasileiro.
Nascida em 1891, em Salvador, Bahia, Maria José estudou no Colégio Alemão dessa cidade e se tornou fluente em quatro idiomas – alemão, inglês, francês e italiano – além do português, naturalmente. Passou a viver no Rio de Janeiro onde, diante de dificuldades financeiras, decidiu-se a prestar o concurso para a carreira diplomática. Era o ano de 1918 e nunca, antes, nenhuma mulher havia se candidatado a entrar nessa carreira. E foi proibida!
Vejam bem, proibida! O Ministério das Relações Exteriores (MRE) sugeria que a diplomacia não era uma carreira para mulheres. A família de Maria José, muito indignada, juntou todas as economias e contratou ninguém menos que Ruy Barbosa para defender seu ingresso. E Ruy Barbosa gostava de fazer confusão (sobretudo para se destacar, por meio delas). Fez-se grande polêmica e Nilo Peçanha, então ministro das Relações Exteriores, capitulou. Maria José pode prestar o concurso e foi aprovada. Saiu-se, aliás, melhor que muitos candidatos homens e, afinal, foi aprovada em primeiro lugar.
“Toma-te, Luis Peçanha!”, teria gritado, comemorando a vitória, na Confeitaria Colombo, o douto Ruy Barbosa – sempre muito implicante e envaidecido de si mesmo, como se sabe (aliás, como nos fatiga saber).
Maria José fez uma carreira diplomática importante (para além do marco simbólico inaugurado), ainda que discreta. Faleceu nova, aos 45 anos, em 1936 e já dois anos depois o Ministro das Relações Exteriores, o extra-famoso (ainda que, possivelmente, mais pelo filé que batizou com seu nome do que por seus incontáveis méritos) Oswaldo Aranha proibiu expressamente o ingresso de mulheres na diplomacia brasileira.
Esse impedimento durou de 1936 até 1953, sendo destruída por uma liminar histórica obtida pela senhora Maria Sandra Cordeiro de Melo, posteriormente embaixatriz Sandra de Macedo Soares (por nome de casamento com o sempre bem referido diplomata brasileiro), que foi a segunda diplomata brasileira do sexo feminino.
Quanto ao filé à Oswaldo Aranha, deve ser dito que ele pode ser feito com filé mignon alto ou, preferivelmente, com contrafilé. E que sua composição clássica é mal-passadíssimo e conta com a famosa cobertura de lascas de alho frito e o acompanhamento de batatas portuguesas, arroz brande e farofa de ovos.
O famoso diplomata, ao que se conta, almoçava às segundas, quartas e sextas, no Restaurante Cosmopolita, o “Senadinho”, situado na velha Lapa, no Rio de Janeiro e, às terças, quintas e sábados, no ainda hoje existente Café Lamas, em Botafogo. E só queria comer a mesma coisa, o prato que inventara.
Como sou frequentador sincero do Lamas, todas as vezes em que estou no Rio, atesto a qualidade da receita. A melhor contribuição de Aranha à humanidade deu-se efetivamente nesse plano.
Dizendo isso, sobretudo no contexto das violências coloniais atuais, silencio sobre o demais.
Inclusive sobre sua interdição ao ingresso de mulheres na carreira diplomática. O que, necessário observar, estava dentro do espírito autoritário, senão mesmo fascista, do período. E, para não delongar no caso, desejo apenas referir que somente no ano de 1996 foi revertido o princípio do tratamento diferenciado que impedia que os dois membros do casal de diplomatas pudessem ter salários equivalentes, condenando um dos dois, geralmente as mulheres, a receberam apenas a 60% de sua remuneração.
Poderia retornar a Elisinha Coelho para terminar lindamente a crônica desta semana, mas o afeto e a consideração me impelem a lembrar, com igual admiração, de Sandra de Macedo Soares, embaixadora de grande valor, que, muito deprimida, em posto em Bogotá, num contexto em que o infame general Hugo Banzer desmandava no país, embora não se possa dizer que em função da cena política vivenciada, viria a cometer o suicídio.
Referências
FRIAÇA, G. J. R. Mulheres diplomatas no Itamaraty (1918-2011). Uma análise de trajetórias, vitórias e desafios. Brasília: Funag, 2018.
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