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Como definir uma ex-namorada? Depois de muito refletir – a respeito da categoria geral e não, obviamente, de minha própria experiência (porque nunca namorei, benza-me Deus, com alguém que se encontre descrita aqui) – eu poderia defini-la como uma estrutura orgânica, de base carbônica, metabolismo ágil, sinapses mais fluidas que as nossas, geralmente com vozinha irritante, à qual se misturam, quimicamente, substâncias que, na cultura ocidental, afigurariam, necessariamente arrefecidas, como “amor-próprio”, “auto-estima”, “orgulho” e “suspeição”.

A ex-namorada produz-se, comunicacionalmente, de maneira analógica, sendo usualmente encontrada, por meio de coincidências intangíveis, nos mesmos espaços públicos frequentados pelo referente sujeito (seu ex-namorado), geralmente no período da noite e, mais costumeiramente, quando este está acompanhado e tem as mãos entrelaçadas às dessa outra estrutura orgânica chamada, necessariamente, de atual-namorada.

Há-se de considerar, sobretudo, a intangibilidade do ser denominado ex-namorada. Eventualmente, em alguns casos, pode-se suspeitar a respeito de sua propensão à onipresença – fenômeno largamente catalogado. Em casos mais raros (e muito graves), menciona-se fenômenos de onipotência, também a ela associados. E tende a perdurar, em todos os casos, a vozinha irritante.

Adentrando por nossas observações, compreendemos que a ex-namorada é a figura anti-romântica por excelência. Trata-se de uma criatura destinada, concebida, feita, programada, para desmentir ilusões, sonhos, idealizações, esperanças, ilações e obnubilações de indivíduos inexperientes com a realidade dos afetos. E, nisso, reconhece-se seu mérito: ex-namoradas servem, sobretudo, para prover de maior tangibilidade a existência, do referente ex-namorado, justamente, nesse mundo.

No caso vacante, quando os referidos indivíduos ganham experiência de tal mencionado mundo, a ex-namorada tende a ceder lugar e permitir, eventualmente, seu (dele) protagonismo como ex-namorado, enfim autociente dos processos que deflagraram, no cerzir da confusa vida, a sua derrisão.

O que fica, afinal, é a referida vozinha irritante.

Além dela, todo o resto passa.

E, isto dito, considerando que estamos falando de sensibilidades e afetos, gostaria de falar a respeito de um certo caso de amor que aconteceu, no final do século XIX, na minha família.

Segurem-se, porque a história é forte e escandalizou Belém… Aliás, como alguém me contou, jamais Belém se recuperaria da surpresa, do choque, do escândalo, do alvoroço, da zaragata, do esparramo, da querela, da altercação, da celeuma e da algaza – todos os qualificativos restam poucos – causados pela paixão devastadora entre os devidos personagens do caso.

Partamos deles. Primeiramente, do primo do meu trisavô, José Caetano da Gama e Silva, nascido em Belém no dia 31 de junho de 1851 e falecido nessa cidade no ano de 1912. Durante muitos anos – de 1886 até sua morte – foi deputado provincial e tinha vários empreendimentos financeiros, notadamente como sócio de uma companhia de seguros. E era, ainda, tenente-coronel da Guarda Nacional.

Pois bem, José Caetano era casado com uma moça considerada muito bela, nos depoimentos de seu tempo: Ignez Bárbara Magnine, filha de João Cândido Magnine e de Bárbara Ferreira da Costa, proprietários de um pequeno hotel. O casal não teve filhos. Aliás, o casamento durou poucos anos.

Ocorreu que um dia, em pleno baile de carnaval, desses que aconteciam no foyer do Theatro da Paz, acidentou apaixonar-se, o José Caetano, de maneira repentina, comovente e devastadora… por uma senhora casada…

Dona Euphrosina Correa de Miranda era casada. Muito nova, ainda, mas casada. Muito casada.

Ela nascera em Igarapé-Miry, no dia 27 de julho de 1863, e faleceria no Rio de Janeiro, a 2 de julho de 1947. Era filha dos barões de Cairary, Antônio Correa de Miranda e Leopoldina de Campos, e era casada com um personagem proeminente das finanças e do mundo da justiça paraense, o advogado dr. Manuel Odorico Nina Ribeiro, com quem tinha um filho, homônimo ao pai.

Para completar, um irmão de Manuel Odorico, Martinho Nina Ribeiro, era casado com uma prima de José Caetano (e, portanto, também de meu trisavô), Emília Augusta da Gama Malcher. E isso tornava a situação um pouco mais complexa – mesmo porque havia um desentendimento que vinha desde a adolescência, ao que parece, entre essa Emília Augusta e sua cunhada.

Tenho duas versões sobre os acontecimentos intervenientes. Uma, tributária provável de espíritos mais românticos, ressalta essa ideia de paixão devastadora. A outra, mais ponderada, menciona a cobiça pelo alheio e incontáveis folguedos de sedução acionados pelo cavalheiro.

Sigo pelo caminho médio, que sugere que houve paixão repentina, mas também, digamos, certo esforço de entendimento (termo que, outros, desejariam substituir por “sedução”). Fato é que, mesmo casados, José Caetano e Euphrosina se dedicaram a uma afeição tão séria, tão importante, que logo era impossível dissimulá-la, escondê-la e, até, protegê-la. E então viram a surpresa, o choque, o escândalo, o alvoroço, a zaragata, o esparramo, a querela, a altercação, a celeuma e a algaza referida.

Os dois deixaram suas casas, seus parceiros, e foram morar juntos, em plenos anos 1890-1900, para escândalo geral. E demandaram o divórcio.

Sim, divórcio, que era o termo correto na época, pois em 1890, com a proclamação da República, por meio do Decreto 181 da Presidência da República, foi instituído o casamento civil, obrigatório, e que substituiu a totalidade de poder presente na antiga união religiosa (católica). O mesmo decreto estabelecia, no seu Capítulo IX, as condições para o divórcio: “O divorcio não dissolve o vínculo conjugal, mas autoriza a separação indefinida dos corpos e faz cassar o regimen dos bens, como si o casamento fosse dissolvido”.

Ou seja, o divórcio permitia a separação de corpos e de bens do casal; apenas. Não permitia um segundo matrimônio. Com o Código Civil Brasileiro, de 1916, o termo divórcio seria substituído pelo termo desquite – no calor do debate público iniciado pelos romances “A Divorciada” (1902) e  “Divórcio?” (1912), das escritoras Francisca Clotilde e Andradina Oliveira – e somente em 1977 o Brasil passaria a contar com uma lei permitindo o Divórcio efetivo, com a possibilidade de constituição de novas uniões estáveis, graças ao projeto de lei apresentado pelo senador Nélson Carneiro.

Mas voltemos a José Caetano da Gama e Silva e Euphrosina Correa de Miranda. Na verdade, quando me contaram pela primeira vez a história deles disseram que foi a mais completa das histórias de amor da cidade de Belém: o casamento perfeito, o entendimento absoluto, o destino realizado, a paixão sublime e o modelo mais invejado dos afetos de um casal.

Houve batalhas políticas, pelas quais os deputados conservadores atacavam o liberal José Caetano, acusando a ideologia liberal (mais que sua pessoa) de ser dissipada nos costumes; batalhas musicais, nas quais o gerente de uma companhia de óperas distratou José Caetano, exigindo que se retirasse de uma récita para não comprometer a harmonia de sua música; batalhas sociais, com as quais José Caetano e Euphrosina foram recusados e desprezados em restaurantes, jantares, festas, quermesses e missas. E tudo isso porque foi, para eles, absolutamente impossível dissimular o afeto que, mutuamente, sentiam.

Simples assim (apesar da interveniente complexidade). Há coisas que são autoexplicativas e que têm termos absolutos, como a paixão.

Ademais, sejamos sinceros, nesse período particularmente licencioso (e alegre) que foi a Era da Borracha, em Belém, eram muitos os casos de adultério e isso não era um problema tão grave assim, escandalizando muito menos do que escandalizaria anos mais tarde. Em certos círculos sociais chegava a ser de mau gosto não ter amantes. A imagem de um Brasil casto, heterossexual, canhestro e conservador sempre vestiu calças tucandeiras em Belém do Pará, ainda mais em meio ao jogo de seduções e entreditos da Era da Borracha. Bem certa a projeção do moralismo cristão em outras plagas, mas não em Belém, cidade de muitos, de inconfessáveis e até de voluntariamente confessáveis pecados.

Não obstante, uma coisa era ter amantes secretas, fossem os senhores, fossem as senhoras, e outra coisa era amar publicamente, desbragadamente, apaixonadamente, como no caso em tela. Não se tratava de um romance eventual ou passageiro, mas de amor – sim, minhas senhoras, meus senhores – não o queriam? Tratava-se de amor.

E a situação foi tão insustentável que José Caetano e Euphrosina romperam seus casamentos, divorciaram-se e, mesmo sem poderem se unir oficialmente em casamento, foram morar juntos, na mesma casa, escandalizando a quem quisesse se escandalizar. Quem quisesse ficar chocado que ficasse. E quem desejasse sofrer por isso, que sofresse. O que importa, não é mesmo? E os detalhes são muitos, mas não vou contar aqui, porque também tenho mais o que fazer. Só quero dizer que o final foi feliz. Até mesmo para os anteriores cônjuges, que seguiram melhor caminho na vida.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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