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 Abel Honorato ao depor sobre os horrores que viveu na Casa Azul
 Raimundo de Souza Cruz, o Barbadinho: paredes tintas de sangue
 Membros da Comissão Nacional e Estadual da Verdade
 Depoentes mostram locais prováveis de sepulturas clandestinas

Fotos: Marcelo Oliveira
Membros da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Pará visitaram, em Marabá, a antiga ‘Casa Azul’, centro de prisões, torturas e assassinatos de presos políticos durante a Guerrilha do Araguaia, quando cerca de 350 pessoas foram executadas na região, na primeira metade da década de 1970.
Dois camponeses presos pelo Exército e um ex-soldado que atuou no combate aos guerrilheiros reconheceram na segunda-feira passada
(15) que o imóvel hoje em área do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), no Km 01 da rodovia Transamazônica, em Marabá, era a temida Casa Azul

Pedro Dallari, José Carlos Dias e Maria Rita Kehl, pela Comissão Nacional; Paulo Fonteles Filho, Egídio Sales Filho e Jureuda Guerra pela Comissão Estadual da Verdade; e Rafael Schincariol, pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, coletaram testemunhos de que o coronel reformado Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, foi um dos principais comandantes da violenta repressão e que sua influência na região persiste até hoje. 

A comitiva foi ao cemitério Jardim da Saudade, no bairro de Nova Marabá, onde Ivaldo José Dias, o Juca (camisa clara), e seu irmão Ivan Jorge Dias, indicaram dois pontos onde participaram de enterros clandestinos, em 1972 e 1973. Eles afirmam que 17 desaparecidos podem ter sido sepultados no local.
Jorge relatou que retirou em torno de quinze corpos em um hospital ao longo desse período. Juca declarou ter recolhido dois corpos no 52º Batalhão de Infantaria da Selva (BIS).
Donos de uma Kombi e interessados na expansão econômica da região, eles deixaram o norte fluminense e migraram para o sudeste do Pará. Confundidos com terroristas, foram presos e torturados pelo Exército e obrigados a colaborar. 

Os depoimentos foram colhidos em audiência pública na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Abel Honorato, ao microfone, contou os horrores que viveu na Casa Azul. Ele foi preso em 1972 porque havia tido contato com Osvaldão, um dos militantes da guerrilha mais temidos pelo Exército. “Me prenderam em casa. Depois me botaram no caminhão e me levaram pra Casa Azul. Lá me bateram com vontade. Me retiraram daqui semi-morto. Saí vestido numa saia, pois não podia botar uma calça“. Por conhecer a região de Palestina, Abel foi obrigado a servir de mateiro para os militares. “Disseram pra mim: ‘você vai agora voltar e vai ter que dar conta dos seus companheiros’. Fui obrigado a trabalhar de guia até depois da guerra, sob os olhos de Curió. Até em Serra Pelada, que foi dirigida por Curió, fiz missões para ele. Tem 40 anos dessa guerra, mas pra mim é um desgosto. Fui muito judiado, fui muito acabado. Até hoje eu não sou ninguém“. Abel causou rebuliço ao apontar o ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo, ex-senador e ex-superintendente da Polícia Federal, Romeu Tuma,  falecido em 2010, como um dos “doutores” que atuavam com Curió nas ações no Araguaia. Lá, Tuma era conhecido como Dr. Silva ou Carlos,  esclareceu. Naquele tempo (1972-1975), ele integrava o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de SP, órgão responsável pela repressão aos militantes de oposição à ditadura militar instalada em 1964. 

Raimundo de Souza Cruz, o Barbadinho, confirmou
o depoimento que deu na Casa Azul, e sugeriu que a Comissão da Verdade visite a base
de Itacaiúnas, onde também houve tortura. “Lá está tudo igualzinho. As
paredes, na época, eram vermelhas de sangue e fezes dos torturados
“,
sublinhou.
 

Os testemunhos expõem o horror de um ciclo da História do Brasil na qual o Pará teve papel relevante, e que precisa ser documentado, e as investigações continuam. Há muito o que desvendar.

No final de junho de 2011 foi assassinado em Serra Pelada, distrito de Curionópolis(PA), Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”,   ex-mateiro das Forças Armadas, um dos mais importantes rastejadores recrutados para debelar o movimento organizado pelo PCdoB na região do Araguaia. Em maio daquele ano, ele tinha feito revelações estarrecedoras e, coincidentemente,  dias antes de sua morte, o Major Curió esteve na região, reunindo com aqueles que ainda lhe são fiéis. Diante do fato, amplamente denunciado, a juíza federal Solange Salgado determinou, em dezembro de 2011, que a PF investigasse o caso e revelou, em entrevista à Folha de São Paulo, na edição do dia 6 de março de 2012, que “essa questão do Araguaia está ficando muito preocupante, as ameaças são recorrentes, há indícios concretos” e “as pessoas que viveram naquele momento triste da história nacional e que hoje tentam colaborar com a Justiça estão sendo ameaçadas de morte”. 

Sentença da mesma corajosa magistrada obrigou a União, em fins de 2007, a localizar, identificar e esclarecer em que condições ocorreram os desaparecimentos e mortes.
O governo federal, para cumprir a decisão judicial, criou o Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), do Ministério da Defesa que, entre 2009 e 2010, percorreu a região realizando diversas escavações, mas com resultados pífios. Em dois anos, uma ossada foi localizada, na região do Tabocão, em Brejo Grande do Araguaia (PA). 

No relatório de fechamento do ano de 2010, a representação do PCdoB, presente naquele esforço institucional, denunciou que “(…) No curso da segunda expedição do Grupo de Trabalho Tocantins tomamos conhecimento, através de denúncia (…) da presença de remanescentes da repressão ao movimento insurgente e que estariam fazendo ameaças contra ex-colaboradores das Forças Armadas na região do Araguaia para que os mesmos não subsidiem de informações o Grupo de Trabalho Tocantins no sentido de realizar com êxito a tarefa de localizar os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Em contato com (…) podemos perceber a angústia daquele trabalhador rural que foi barbaramente torturado naquele episódio da vida brasileira porque um de seus algozes, conhecido como ‘Doutor Marcos’ que junto com ‘Doutor Ivan’ estiveram na região do conflito na segunda metade do mês de junho de 2010 (…)”. 

Em 2011, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República passaram a integrar as buscas, e foi ampliada a presença de familiares de desaparecidos políticos e de instituições científicas ligadas ao tema. Paulo Fonteles Filho, por exemplo, atual membro da Comissão da Verdade do Pará, que nasceu na prisão, cujos pais Paulo Fonteles e Hecilda Veiga foram presos políticos, o pai tendo participado da guerrilha do Araguaia e sido assassinado pelo crime organizado, participa desde sempre dessas buscas, seja como observador ou como membro oficial dos grupos de trabalho. 

Foi criado, então, o Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), com o entendimento de que a maioria dos guerrilheiros e camponeses desaparecidos está enterrada em cemitérios da região, como indigentes.
Mas, em ofício à PF de Marabá, em fins de março de 2011, Paulo Fonteles Filho informou que “No nascedouro de 2011, nos dias 26 e 27 de fevereiro do corrente ano vim até Marabá para acompanhar (…) o encontro dos ex-soldados e ex-funcionários do INCRA que atuaram na repressão ao movimento insurgente das matas do Pará. (…) No encontro, tomamos ciência de que (…), ex-militar, motorista do Major Curió entre os anos de 1976-1983, também estava sendo ameaçado. Tais ameaças iniciaram-se em dezembro de 2010 depois que aquele ex-militar passou a colaborar com os trabalhos do GTT-MD. (…) Na reunião de fevereiro gravamos um extenso depoimento (…) onde o mesmo revela ter participado de uma macabra “operação-limpeza” em 1976 em diversas localidades na região do Araguaia. Disse, ainda, que o responsável pelas ameaças que vem sofrendo é (…) do Major Sebastião Curió. (…) Em primeiro de março duas ligações anônimas são desferidas ao celular de (…), sempre em chamadas confidenciais. No dia seguinte, uma caminhonete peliculada rondou de forma suspeita, insistentemente, nas imediações de sua casa em (…). No mesmo dia, dois de março, por volta das 12 horas, uma caminhonete cabine dupla, também peliculada, com quatro elementos estranhos, parou em frente à casa de Sezostrys Alves da Costa, dirigente da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia, em São Domingos (…). Dias depois soubemos (…) que quem esteve circulando pela região, recentemente, é um tal de ‘Doutor Alceu’, ex-capitão do Exército, ligadíssimo ao Major Curió (…). Sabemos que nossas vidas (…) de camponeses e de ex-militares estão sob ameaça e se nada for feito, tenho certeza, um episódio ainda mais grave poderá ocorrer (…)”. 

Estimulados pelo relato de ex-soldados que passaram a contribuir com as investigações, algumas figuras que tinham guardado silêncio por quase quarenta anos começaram a falar.
Nesse contexto, Raimundo “Cacaúba” prestou importantes informações sobre os bastidores da atuação militar no Araguaia.
Recrutado pelo “Doutor Antônio”, comandante da base militar de São Raimundo, violentíssimo agente da repressão, foi atuar como rastejador nas cercanias da reserva dos Suruí-
Aikewára em São Geraldo do Araguaia (PA), em meados de 1973. Pois o tal “Dr. Antônio”, conforme narrou, permanecera na região até janeiro de 1985 “procurando algum guerrilheiro sobrevivente”.
Mas “Cacaúba” contou que “no local conhecido por ‘Centrinho’, ao lado do rio Sororozinho, conheceu ‘Zé Carlos’ (André Grabois), ‘Ivo’ (José Lima Piauhy Dourado) e ‘Joca’ (Líbero Giancarlo Castiglia), este ferido no braço”. Teria, também, conhecido “a ‘Valquíria’ (Walkiría Afonso Costa), moradora do São Raimundo que apareceu em sua casa acompanhada de ‘Joca’ depois do tiroteio com o ‘Juca’ (João Carlos Haas Sobrinho)”. Cacaúba disse, ainda, que “os meninos do mato se comunicavam com os moradores Antonio Monteiro (…), Luís Roque e Antonio Luís através de uma vara seca e uma vara verde” (!), sabe-se lá como.
E que “a Valquiría, muito magra, foi presa na casa do ‘Zezinho’ e Maria ‘Fogoió’ e foi morta pelo Capitão Magno”, militar muito citado pelas torturas perpetradas contra os camponeses e que teria sido um dos agentes que atuou, anos depois, na prisão dos padres franceses do Araguaia, Aristide Camio e Francisco Gouriou, no início da década de 1980, acusados de promover subversão e intentar, junto com o advogado da Comissão Pastoral da Terra, Paulo Fonteles, novas guerrilhas, e que por isso foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Indicou, por fim,  que na região da “Abobóra” viu “o ‘Joca’ amarrado com embira (fibra extraída de algumas árvores e que serve para a fabricação de cordas), todo ‘obrado’ e muito machucado”. Teria presenciado o traslado do combatente, depois de morto, para a Base de Xambioá (TO) e que lá fora sepultado. Detalhou que o “Amaury” (Paulo Roberto Pereira Marques) fora preso “com o pé baleado” e o ‘Doutor Antunes’, da Base de São Raimundo, provocava-o perguntando se queria comer um mutum e que o ‘Ivo’ foi preso e vestia calça azul tropical”.
Revelou, ainda, codinomes de agentes da repressão política, como é o caso dos doutores “Ivan”, ‘‘Maia”, “Molina” e “João”. O tal ‘‘Molina”, registrou, “não falava igual a nós”. 

Só entre 2011 e 2012, o Grupo de Trabalho Araguaia exumou 14 ossadas, nos cemitérios de Xambioá (TO) e São Geraldo do Araguaia (PA) e há expectativa de que sejam encontrados outros tantos desaparecidos políticos num dos mais importantes sítios mortuários de Marabá (PA), indicados por antigos colaboradores da repressão. 
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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