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Muito se lê e ouve falar acerca de animais extintos ou em risco de extinção, e é mesmo necessário que se trate do assunto, de modo a evitar o desaparecimento precoce de espécies da fauna terrestre em decorrência da ação desastrada do homem, marcada nas últimas décadas pelo desrespeito ao meio ambiente e pelo uso desordenado dos recursos naturais e das fontes de energia.

Quanto a isso não há discussão: a humanidade precisa harmonizar-se com a natureza. Todavia não são apenas os animais, quiçá os vegetais, que estão sob ameaça. Há sons, melodias, ruídos e barulhos que a modernidade condenou impiedosamente ao ocaso. Ao longo dos meus 52 anos conheci muitos deles, várias identidades e memórias sonoras hoje relegadas ao mais profundo ostracismo.

Não encontro mais pelas ruas, por exemplo, o som da sineta dos carrinhos de sorvete que circulavam pela cidade, o tilintar dos triângulos metálicos dos vendedores de cascalho ou o sopro fanhoso das buzinas de ar dos pipoqueiros. Há tempos não ouço o zumbido das cigarras, tão comum nos anos da minha infância, e o canto dos pássaros, então, já quase não deixa registros no ambiente urbano, salvo aquele que provém da insistência heroica dos bandos de periquitos que sobrevoam Belém, sem os quais talvez nem soubéssemos mais que tipo de som as aves produzem.

Igualmente já não temos o prazer de escutar o assobio fino do motor 1.300 cilindradas de um gracioso fusquinha, e até mesmo as buzinas dos automóveis, rudes e inconvenientes por natureza, resolveram tornar-se ainda mais antipáticas quando abandonaram o delicado bi-bi que se ouvia no passado.

Nas casas, por seu turno, ninguém com menos de quarenta e poucos anos saberia descrever o som arrastado do disco de um antigo telefone a girar, o chiado de uma televisão fora do ar nas madrugadas em que até as televisões repousavam, ou a musicalidade abafada das canções tocadas em frequência de amplitude moderada (AM) por um rádio monofônico, aparelho que os afortunados jovens nascidos na era do som stereo dolby surround por certo tomariam por um desinteressante achado arqueológico.

No mesmo sentido, é cada vez mais raro ouvir o som das pancadas do martelo de madeira sobre a carne que se pretendia amaciar, o ruído estridente das facas de cozinha desgastando as pedras de amolar ou o giro dos tambores das provectas fechaduras de ferro fundido, por cujos buracos era possível observar o que ocorria no reverso das portas, acionadas por chaves enormes que já se tornaram obsoletas.

Nos novos tempos já quase não há quintais, e por isso já quase não se ouve o cacarejar das galinhas, o grasnar dos patos ou o gorgolejar dos perus que os habitavam, e que invariavelmente iam parar nas mesas das famílias por ocasião dos almoços ou jantares festivos.

A internet também sepultou sons que lhe eram próprios, como é o caso do ruído irritante que precedia a conexão na época do acesso discado, reminiscência de um passado aparentemente distante, embora não seja vetusto. Não resta dúvida, contudo, de que a rede mundial de computadores e o mundo digital foram mais inclementes com os sons que não lhes pertenciam, ou alguém desconhece os culpados pelo fim dos charmosos clicks das câmeras fotográficas analógicas?

São, enfim, muitos sons do passado, muitos ruídos que já não cabem mais na atualidade, cujas ausências no mais das vezes sequer são percebidas. São os ônus da evolução e do progresso, e na verdade esse fenômeno não deve causar grandes transtornos e preocupações, exceto em aspectos específicos capazes de gerar temor e angústia. O principal deles, na minha humilde opinião, consiste no fato de que alguns dos sons que já não ouvimos são os sons de palavras que já não são ditas, caíram em desuso ou foram simplesmente esquecidas pelas novas gerações.

É sabido que a língua é um organismo vivo que se reinventa cotidianamente, criando palavras novas enquanto sepulta outras mais arcaicas, mas também me parece inegável que vivemos um período de pauperização da linguagem, de descuido com o léxico, a sugerir uma intimidade decadente das novas gerações com o vernáculo.

Pouca leitura, talvez, ou a propagada necessidade de simplificar a grafia e a oralidade para propiciar uma inclusão que julgo preguiçosa. Empobrecer a língua, deturpando-a ou vulgarizando-a para abolir aquilo que cria complexidades não me parece um bom caminho. Afora isso, parece haver uma fixação exagerada num estrangeirismo cafona e presunçoso que aos meus ouvidos causa arrepios, e que me faz lembrar algo interessante que encontrei dia desses pelas redes sociais:

“Não é call, é ligação.

Não é job, é trabalho.

Não é deadline, é prazo.

Não é budget, é orçamento.

Não é meeting, é reunião.

Não é briefing, é roteiro.

Não é mindset, é mentalidade.”

Preservemos os sons da língua de Camões, Machado de Assis e Jorge Amado. Cuidemos com afeto dos sons da língua de José Saramago, Ariano Suassuna e Cecília Meireles. Ouçamos com deleite o que nos cantam Chico Buarque, Caetano Veloso e Dorival Caymmi. Só temos a ganhar com isso, tenho absoluta certeza!

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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