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Em março de 1968 o Nobel de Literatura José Saramago (1922-2010) publicou na imprensa lisboeta uma carta dirigida à sua avó Josefa, uma trabalhadora rural do Ribatejo que dedicou 90 anos de vida ao trabalho e à família, num universo que jamais ultrapassou os limites da Azinhaga, pequena aldeia às margens do Rio Almonda.

Na missiva – na verdade uma crônica de rara beleza – o escritor confessava não entender o comportamento daquela mulher simples e analfabeta que, mesmo desgastada por décadas de luta braçal contra a pobreza, exalava um imenso amor pela vida e uma sábia compreensão da sua finitude, encarando com profundo lirismo a morte que sentia aproximar-se, destino comum e inexorável de todos nós.

Mesmo em excertos esparsos do texto é possível perceber sua magnitude: Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los (…) Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. (…) E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança (…) Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: ‘O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!’”

Não é difícil encontrar a versão completa na internet. Lê-la é um exercício pleno de crescimento místico, percepção da realidade e, sobretudo, de identificação daquilo que realmente tem valor e efetivamente importa.

Josefa faleceu poucos meses após a publicação; Saramago permaneceu mais quarenta e dois anos entre nós, deixando-nos aos 88 anos de idade, não sem antes declarar que gostaria de viver por muito mais tempo para dedicar-se ao trabalho e ao grande amor de sua vida, a esposa Pilar Del Rio. Em certa ocasião, assim descreveu a senectude e a expectativa pelo ocaso do seu tempo: “Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia; provavelmente é isso a velhice.”

Viver é uma oportunidade de ouro, dom e presente de Deus que em muito restaria enriquecido se nos portássemos melhor diante da morte, se a encarássemos com mais naturalidade e menos medo, tal como o fazem alguns povos ancestrais filosófica e espiritualmente mais evoluídos, cientes e conscientes de que ela é apenas uma etapa da vida enquanto processo biológico e esotérico – começo, meio e fim; nascimento, crescimento, envelhecimento e perecimento.

Rubem Alves (1933-2014), psicanalista, educador, teólogo e escritor que tanto admiro e constantemente cito, ensinava que “Somente aqueles que se tornam discípulos da morte sentem a doçura da vida. Quem não é discípulo da morte fica achando que ainda há muito tempo e, com isso, não se dá conta dos morangos que há à beira do abismo. Ele pensa que há um lugar aonde se chegar. Não há. Todos os caminhos levam ao mesmo fim. Não vida só há o caminho…” (Sobre a vida e a morte, Ostra feliz não faz pérola, 3ª ed., São Paulo: Editora Planeta, 2021).

Dizia também, exaltando a oportunidade e a graça de viver: “se eu estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres e mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo como escamas inúteis. A morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria o luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável… Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa, Gabriel Garcia Márquez, Saramago. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. E o Chico… Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim… Não, não é nada mórbido. É que não temos opções. A vida é aquilo que fazemos com a nossa morte. Ou a olhamos de frente e ela se torna amiga, ou fazemos de conta que ela não bate à porta, e ela entra noturna, pela porta da cozinha, para nos ir comendo em silêncio” (A vida é o que fazemos com a nossa morte, op. cit, p. 267).

Precisamos valorizar a vida, o fato de estarmos vivos, a benção infinda de conviver com quem amamos, menosprezando sem dó tudo de pequeno, vil, efêmero e irrelevante que, erroneamente, mantemos e permitimos ao nosso redor, nublando nossa visão e sugando nossas forças, tal qual parasitas. A vida é curta, passa rápido e não costuma dar novas chances. O que ficou para trás não voltaremos a encontrar.

Tive recentemente a oportunidade de frear um pouco o cotidiano agitado e cheio de compromissos tolos para pensar na finitude da vida, para lembrar que “a morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar”, como recitava Raul Seixas. Graças a Deus tudo correu bem, estive com excelentes médicos, fiz uma cirurgia bem sucedida e caminho esperançoso para o restabelecimento total, mas se algo ficou de positivo, esse algo é a reinterpretação da vida.

Hoje abraço mais forte meus filhos, beijo com mais doçura minha esposa, ligo mais frequentemente para a minha mãe. Planejo trabalhar menos e ler mais, me aborrecer menos e viajar mais, conviver menos com quem pouco acrescenta e reservar mais tempo e espaço para os amigos que me são tão essenciais. Pretendo beber mais vinho e tolerar ainda menos as músicas que me desagradam. Premedito cuidados mais eficazes com a saúde e atenções mais concretas com aqueles que posso ajudar.

Além disso, enfeitei com uma linda orquídea branca a mesa de trabalho, encomendei um trompete dourado e estou à procura de um professor.

O susto valeu a pena!

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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