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Você possui dívidas no consignado e no cartão de crédito que consideram impagáveis e te deixaram com nome sujo na praça? Saiba que você não está sozinho.

Segundo dados do Serasa, mais de 17 milhões de brasileiros e brasileiras possuem dívidas contraídas de boa-fé e consideradas impagáveis pois se aproximam ou mesmo superam o total de seu salário/receitas, o que inviabilizam a própria sobrevivência com relação aos demais gastos de rotina. E o maior vilão são as parcelas do cartão de crédito.

Estes são chamados de superendividados, que possuem uma lei própria 14181/2021 de proteção ao consumidor. A lei é bem-vinda, pois assim como uma empresa em dificuldades financeiras podem se valer de regras especiais para saldar seu débito e tentar preservar seu negócio e os empregos, não era justo que as pessoas físicas não tivessem o mesmo tratamento jurídico.

A Lei em questão prevê que o cidadão com sérias dificuldades em honrar seus pagamentos por dívidas cada vez maiores em função de juros e reféns do mercado financeiro ou mesmo de agiotagem (que é crime), possam através de Advogado ou Defensor Publico ou outro intemediador habilitado realizar uma ampla negociação com seus principais credores (sobretudo bancos) para que os juros sejam reduzidos, o principal da dívida seja reduzido e as parcelas roladas de modo a se tornarem “pagáveis” sem que prejudique o mínimo existencial dos devedores.

Também possui um caráter pedagógico de educação financeira com controle de gastos e evitar compras por impulso, de modo que os superendividados possam sair dessa situação angustiante para nunca mais retornarem, com a aplicação de técnicas simples e comprovadamente eficientes de como lidar com dinheiro e com as facilidades de crédito fácil e nem sempre essenciais.

Claro que é impossível não enxergar a realidade social presente nessas relações. Além de termos um povo que ainda possui mazelas de toda sorte, em especial econômica com o reingresso do país na miséria e no mapa da pobreza extrema, o plano é que gradativamente as pessoas voltem a ter ocupação com emprego e renda e volte a dinamizar a economia produtiva com a contratação de novos empréstimos, desde que de forma controlada e responsável.

Recentemente o governo Federal mediante decreto praticamente dobrou o valor considerado como mínimo existencial de R$ 303,00 para R$ 600,00. Ainda assim, esse valor é extremamente criticado pelos especialistas, que entendem que cabe ao Poder Judiciário avaliar caso a caso, o que vem ocorrendo naturalmente.

É aí que se insere o Programa Desenrola, criado pela Medida Provisória 1.176/2023 e convertido em lei pela Lei Federal 14690, de 03 de Outubro de 2023, que institui um Programa de Refinanciamento de Dívidas até 31/12/2023 para pessoas de baixa ou média renda.

Embora sempre sujeito a aperfeiçoamentos, o êxito do Programa é inquestionável. Apenas na sua primeira etapa com o cancelamento da negativação dos nomes dos clientes com dívidas de até R$ 100,00, mais de 06 milhões de pessoas passaram a constar com nome limpo na praça, embora a dívida persista.

Com a segunda etapa e terceiras etapas, estima-se que pode beneficiar mais de 32 milhões de pessoas com renda de até dois salários mínimos ao renegociar dívidas de até 5 mil reais a juros até 83% menores que os praticados tradicionalmente pelo mercado na Faixa 1 do programa, e de R$ 5 mil a R$ 20 mil na faixa 2, a partir da criação de uma plataforma de negócios virtual que envolve devedores e credores como bancos, empresas de varejo, administradoras de cartão de crédito, concessionárias e serviço público . 

Outra grande novidade dessa lei, é a limitação dos juros do rotativo do cartão de crédito. Sem qualquer regulação, os juros para quem não paga a parcela integral do cartão de crédito vinda na fatura, chegam a inacreditáveis 455% ao ano. Um verdadeiro descalabro do mercado financeiro e uma exploração do consumidor sem qualquer paralelo no planeta!

Com a nova lei, estabeleceu-se um prazo de 90 dias para que o mercado se autorregule, ou seja, apresente uma proposta de redução dos juros do crédito rotativo que não poderá ser superior a 100% do total da dívida nominal. Caso não haja tal proposta no prazo estabelecido, valerá o teto de 100% de correção a titulo de juros no período de um ano.

Para se ter uma idéia do quanto a ausencia de regras atuais é terrível para a população, mesmo com a redução dos atuais 414% a.a para 100% a.a, continuaremos tendo a maior taxa do crédito rotativo do mundo! Mas se trata de um grande avanço. O avanço possível, dados os interesses em jogo.

O interessante é que diversos órgãos públicos possuem setores ou núcleos especializados para atender a demanda das pessoas superendividadas. A Defensoria Pública do Estado do Pará desde alguns anos possui um programa especializado na composição dos conflitos de maneira preferencialmente extrajudicial, podendo também haver a judicialização quando o acordo se mostra impossível em um primeiro momento. Também se privilegia a educação financeira, para evitar que o cidadão ao sair do sufoco, caia novamente na tentação de contrair novas dívidas sem qualquer controle ou que não se prepare para suportar adversidades que podem ocorrer (desemprego, morte na familia de um provedor econômico)

Inclusive dadas as peculiaridades de que o conceito de superendividamento diz respeito não a renda de cada pessoa, mas sua relação com o total de dívidas contraídas de boa-fé e ameaça a sobrevivencia financeira e mesmo existencial dos consumidores, é que se trata de uma excessão à limitação do atendimento do público-alvo da instituição a pessoas com renda de 2 a 3 salários mínimos, já que se insere no conceito de vulnerável o cidadão ou cidadã que, embora possa ser considerada de classe média pela renda auferida, encontra-se financeiramente às portas da insolvência, não possuindo recursos disponíveis, ainda que momentaneamente, para arcar com custas processuais ou honorários advocatícios sem prejuizo do sustento próprio ou de seus familiares.

Enfim, uma série de leis e políticas públicas vem sendo implementadas para enfrentar a questão, mas certamente em um modelo de vida que prioriza o consumo desenfreado e lucros exorbitantes do mercado financeiro e de grandes corporações, o desafio é gigantesco e os dramas humanos continuarão ocorrendo. Mas cada vez mais vão se criando mecanismos para que as pessoas deixem de ser totalmente reféns do superendividamento, o que além de resgatar a dignidade humana, ao fim e ao cabo acaba sendo positivo para a economia e o bem-estar social, ampliando o mercado consumidor.

Bruno Braga Cavalcante
Defensor Público do Estado do Pará, Pós Graduado Lato Sensu em Direito Público e Privado, Especialista em Gestão Pública, Coautor de obras jurídicas e articulista.

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