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Tenho profunda gratidão pela literatura. Encontro nela em plenitude, mais que em qualquer outro lugar, a beleza, prova maior da existência do Deus em que acredito. Alguns o veem nas artes plásticas – basta olhar os afrescos da Capela Sistina ou a Pietá, por exemplo, para compreender um Deus presente que se manifesta, habita e faz templo na beleza, este estado transcendental de deleite e contemplação, autêntica e legítima prece que se reza com os sentidos humanos. Outros o percebem na música – muitos destes afirmam escutá-lo quando ouvem Bach. A mim, em particular, emociona sobretudo a beleza que há na literatura, na capacidade que certos privilegiados tem de criar, contar e eternizar histórias com um talento sublime que certamente encerra algo de místico, de sagrado.

Ler um livro e emocionar-se com o texto é, na minha percepção, daquelas experiências que escapam à ciência e repousam no campo do sobrenatural, da enlevação do espírito, quase uma espécie de oração. Nesse sentido, e para acalmar os puristas ortodoxos que podem ver nisto indícios de heresia, sirvo-me das lições do Cardeal José Tolentino Mendonça, presbítero português que faz da literatura – em especial da poesia, dos aforismos e ensaios – terra fértil para semear tolerância e amor. Segundo Tolentino, “se orar é falar com Deus, não são precisas palavras para a oração. Deus não fala com palavras. É o Verbo… Deus está, na sua eternidade, no segredo”, e a oração, para além de repetir palavras decoradas, “é estar com Deus.”

“A literatura, sim, a música, a poesia, o cinema, o teatro, a pintura, são estados de oração. São a nossa pobre maneira de ver Deus: criar beleza… Por vezes a oração naufraga porque é demasiado séria. A oração também se faz de leveza, também se soletra como uma súbita fome de infância, como o alvoroço repentino dos amigos que se reencontram depois dos dias cinzentos. A oração não é um enigma, é um encontro.” (Um Deus que dança, 1ª ed., Ed. Paulinas, SP – 2016).

Visto isso, o que me traz hoje a esta crônica é o desejo de compartilhar uma descoberta de extrema beleza, tão intensa e prazerosa que seria imerecido reduzi-la a um singelo júbilo artístico, desprezando seu significado mais elevado, metafísico até. Trata-se da leitura de “Salvo o meu coração, tudo está bem”, do escritor colombiano Héctor Abad Faciolince, nascido em Medelín em 1958, graduado em Literatura Moderna pela Universidade de Turim, na Itália.

Eu havia encontrado uma recomendação do livro nas redes sociais, precisamente numa postagem da escritora portuguesa Carla Pais, autora de dois livros maravilhosos – Mea culpa e Um cão deitado à fossa, o primeiro incluído na lista das minhas melhores leituras de 2023, o segundo referido no rol de 2024. Carla o mencionou de modo lacônico, mas com grande impacto sobre mim (se ela escreve o que li, me apraz ler o que ela lê). Como não o encontrei de pronto, resolvi começar a conhecer o compatriota de Gabo por outra obra cujo título, vim a saber durante a leitura, foi inspirado num texto de Jorge Luis Borges – “Somos o esquecimento que seremos”.

Nela Faciolince conta com incontida emoção a história do pai, Héctor Abad Gómez, médico e ativista assassinado em 1987 por paramilitares que, somados aos sicários e aos grandes traficantes de cocaína, transformaram a Colômbia das últimas décadas do Século XX num vulcão em permanente estado de erupção. O relato é lindíssimo, seja pela admirável devoção ao pai, seja pela complexidade com que são explorados temas essenciais como família, política, idealismo, poder e religião. Sem ser melodramático, o autor estabeleceu altíssimos padrões literários (tanto de estilo quanto de conteúdo) para abordar situações que no cotidiano podem parecer óbvias, entre elas a do filho que, tomado pela dor e pela revolta com a perda violenta do pai, questiona a existência de Deus.

“Essa experiência em que a ventura se tingiu, subitamente, de dor, devia ter servido para me alertar, repito, para o fato de que a nossa felicidade está sempre em equilíbrio perigoso, instável, à beira de escorregar por um precipício de desolação (…) Há períodos da vida em que a tristeza se concentra, como se se tratasse da essência de uma flor com que se faz perfume ou do espírito de um vinho com que se faz álcool. Por vezes, na nossa existência o sofrimento decanta-se até se tornar insuportável (…) Onipotente não estava minimamente interessado no que acontecia neste vale de lágrimas, pois os raios da sua ira não castigavam os réprobos, nem os favores da sua graça choviam sobre os bons.”

Ainda em êxtase, e depois de encontrar a obra indicada por Carla Pais na Livraria Bertrand, em Lisboa, iniciei a segunda incursão à literatura daquele autor até então desconhecido, e para meu espanto fui exposto a uma obra prima ainda mais poderosa. “Salvo o meu coração, tudo está bem” é um livro hipnotizante e arrebatador, que doravante residirá nas prateleiras mais reservadas da minha biblioteca, ao lado de títulos que considero formadores de quem eu sou como leitor, homem, advogado, pai e cidadão.

Nele Héctor conta a história de Aurélio Sanchez e Luis Córdoba, dois padres cordalianos pouco usuais que residem juntos em Medelín. Portador de gravíssima enfermidade cardíaca, Córdoba passa a viver numa casa em que residem duas mulheres e três crianças – Teresa (patroa, recém separada de Joaquín, mãe de Júlia e Alessandro) e Darlis (empregada, mãe solteira da menina Rosa) –, enquanto espera por um transplante de coração.

Apaixonado por cinema e música clássica, notadamente ópera, e também por crianças, Córdoba é um personagem fascinante, segundo o qual o maior dano que o celibato causa aos sacerdotes não é a abstinência sexual, e sim a renúncia à paternidade.  Por seu intermédio, e também pela amizade que lhe dedica Aurélio Sanchez, vivenciamos na pele, como se fossemos nós os envolvidos, os dilemas de um homem que vive à sombra da morte, sob o peso de dogmas e regras que nem sempre lhe trazem respostas, e que faz da arte seu combustível e sua razão de resistência.

“A arte e a beleza declaram guerra à brutalidade e ao desamor, e por conseguinte são o reflexo do amor, que é a manifestação mais clara e palpável da existência de Deus. O que é verdadeiramente misterioso não é a doença ou o mal, mas a saúde, a bondade e a beleza. (…) Dois aposentos tem o coração: num vive a alegria, noutro a dor. (…) O paraíso, insistia ele, só pode ser temporal, intermitente, porque caso contrário, se torna uma sobremesa perpétua ou eterno domingo. A vida amena está sob permanente ameaça de enjoo ou fastio.

Cativante também a narrativa da amizade entre os protagonistas, espécie desinteressada de amor, plena das suas virtudes, imune às suas armadilhas. Aurélio Sanchez e Luis Córdoba vivem no livro uma amizade à prova de intempéries, alicerçada na compreensão irrestrita, no perdão irrenunciável e na sabedoria que há na fraternidade. Talvez seja essa a marca mais profunda que o livro me deixou, e aí, para encerrar, volto às palavras do Cardeal Tolentino: “Há amigos que nos iniciam na decifração do fogo, na escuta dos silêncios da terra, no entendimento de nós próprios. Há amigos que nos conduzem ao centro de bosques, à geografia das cidades, ao segredo da iluminada penumbra do templo, à bondade de Deus.” 

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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