Salvador Dalí foi um artista multifacetado. Transitou pela literatura, cinema, escultura, fotografia e pintura, através da qual alcançou a fama. Como pintor não nos deixa indiferentes diante de suas intrigantes obras surrealistas. O que muitos não sabem é que Dalí começou com o impressionismo que se caracteriza por retratar paisagens com contornos imprecisos, passando depois pelo cubismo, cujo movimento é marcado pelo uso das formas geométricas e, por fim, ao surrealismo que se destaca, de forma resumida, por tentar exprimir o funcionamento real ditado pelo pensamento, ausente de qualquer controle da razão e de preocupação estética ou moral.
A história de Dalí é carregada de acontecimentos insólitos. Nasceu três anos após a perda do seu irmão cujo nome também era Salvador e seus pais, devastados pelo luto que nunca findou, projetaram de tal forma nele a imagem do irmão morto a ponto de afirmarem que era a reencarnação daquele. O impacto disso foi tão terrível que o fez acreditar haver experimentado a morte antes mesmo da vida e criou um grande problema de identidade, pois sentia que o desejo da mãe era inexistente em relação a ele já que a imagem do irmão morto estava continuamente sobreposta. Dalí atormentava-se com a ideia de que sua existência se justificava apenas para que o irmão não morresse.
Para conquistar seu próprio espaço na esperança de que seus pais passassem a ver somente ele, sem o seu “duplo”, Dalí travou uma luta árdua. Desde pequeno buscava desesperadamente o olhar do outro. Gritava pela casa, simulava crise de tosse, fingia perda da voz, urinava na cama à noite deliberadamente, agredia sua irmã mais nova com chutes na cabeça, fazia cocô nas gavetas, saltava os muros da escola, manipulava perversamente as pessoas e outras dezenas de coisas. Tudo isso não apenas pelo prazer de causar dor e angústia, mas também como tentativa de transformar sua fragilidade em força. A figura excêntrica, exibicionista e megalomaníaca do artista é atribuída à tentativa de torná-lo original, único, e então, conquistar a admiração da mãe pela sua própria existência.
No surrealismo Salvador Dalí encontra a “arma” que precisava para rebelar-se contra a família. Ao romper convenções e criar uma imagem irreverente e exibicionista, oposta a do irmão morto, liberta-se do lugar do substituto e passa a existir de fato. E como tinha medo do real, devido à ameaça do espectro do irmão, criou um mundo à parte através dos seus delírios.
Mas, por ocasião da morte de sua mãe e da relação simbiótica que tinha com ela, perde seu espelho e fica devastado. Será na tela o enigma do meu desejo, que simbolizará seu desejo edipiano ao retratar a mãe como objeto de amor imaculado. Essa forte relação com a mãe parece explicar, mais tarde, a maneira como amou Gala e permitiu que ela o curasse de seus fantasmas da infância e amenizasse seu desejo de autodestruição. Gala fez dele amante e filho. A fusão foi tão intensa que Dali passou a assinar suas obras como Gala-Dalí.
O pressuposto para o surrealismo é a existência de uma realidade superior que poderá ser acessada através da associação de coisas que não guardam conexão entre si. Freud dizia que o surrealismo provoca uma espécie de “sonho diurno”. Há um deslocamento dos objetos exteriores para o interior, possibilitando o encontro com o inconsciente. Assim, podemos pensar que a verdade em Dalí foi direcionada à sua arte. Não sem razão, Dalí fica fascinado por Freud e pela psicanálise quando lê a obra A interpretação dos sonhos. Passa a encontrar na psicanálise a chave para os seus medos, desejos e obsessões.
Mas seu encantamento com o método psicanalítico não se resumiu a conhecer Freud e Lacan e interessar-se pelo tema. Dalí, diante do quadro O angelus, de Jean François Millet, fica tão atordoado, porque o relaciona à imagem ao seu irmão morto, que formula a teoria denominada por ele de “método paranóico-crítico de interpretação da realidade”. Achando que havia inventado algo novo, diz que a paranoia é uma forma de conhecimento e que a diferença dele para um paranoico é que ele sabe que é e, por saber, assume uma dimensão de método de investigação. Acontece que, ao dizer que essa “investigação” coloca o mundo como uma projeção do seu olhar, sua teoria vai ao encontro de teorias já propostas por Lacan sobre o estudo da personalidade.
As obras de Dalí são extremamente intrincadas com a subjetividade do artista. Por trás da sua irreverência nos deparamos com um interior frágil, indefinido e vulnerável. Ele encontrou na arte uma maneira de expressar suas fixações e angústias, em particular as relacionadas à sua infância, e organizar sua estrutura psíquica ao dar contorno aos seus delírios. Suas pinturas representam o corpo com uma sexualidade alucinadamente potente e uma estrutura orgânica amorfa, como se perdesse o tônus e se esvaziasse, evidenciando um onirismo exuberante, onde corpos e objetos se derretem e metamorfoseam-se.
A morte, o erotismo e Gala são temas que permeiam toda sua obra. E apesar de reproduzir o sexo com frequência, via no sexo feminino uma ameaça capaz de revelar sua impotência e de devorar-lhe. Essas fobias sexuais dalinianas vemos nas mandíbulas dos leões e nos louva-a-deus de suas pinturas. Em especial no caso do louva-a-deus que, durante a cópula, a cabeça do macho é devorada pela fêmea.
Dalí de fato era sensacional na sua forma de sentir e expressar-se. A ideia dos relógios moles surgiram da angústia pela ausência de Gala que havia ido ao cinema com amigos. Dalí, por causa de uma repentina dor de cabeça, preferiu ficar. O afastamento da amada fez com que, em apenas duas horas, concluísse a obra Persistência da memória.
Salvador Dalí não morreu em consequência do incêndio em seu quarto durante à noite. O gênio surrealista morreu de subnutrição por recusar-se a comer, acreditando que tentavam envenenar-lhe. Seu fim contradiz a sua teoria na qual afirmava ser um paranoico diferenciado porque sabia que era.
E assim, vestido de irreverência, segurança, arrogância e fugindo da realidade se abrigando na arte, encobriu-se durante toda a vida. Dalí ocultou nas telas seu Eu destroçado, deu expressão às suas aflições, evitando sua desintegração psíquica, contornou as suas fantasias inconscientes e exteriorizou a ansiedade, a destruição, a culpa, o temor da morte e seus delírios de perseguição, conseguindo, na medida do possível, driblar seus fantasmas.
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