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Nesses últimos dias, tem me sido muito divertido escutar as ideias e projeções de familiares e conhecidos a respeito de meu futuro. Há aquele que elogia efervescente algumas das qualidades que atribuo ao meu trabalho e estudos, e há aquele que me diz qualidades que jamais terei, do luxo à aparência, à inteligência ou erudição. E o pior é que adoro ser elogiado, principalmente em relação àqueles que costumam impelir-me ao extravagante, ao culto, como um dignitário forte das coisas certas. E aqui começa a discussão que levanto — o sonho de ser maior.

É próprio do homem a necessidade de ser suntuoso, ser homem de pompa, estar na ponta da hierarquia. Como homem que sou dos pés à cabeça, a inferiorização, seja da maneira que for, abala, irrita e machuca. Em certos dias, o rapaz ou moça que ofender meu lado onírico, meu lado maior, é uma ameaça clara, pedindo que eu a supere e não seja sinceramente esmagado. Essa é a característica que todo homem dispõe e o nosso hábito defensivo. Vivi sob este axioma! Viver conforme os sonhos e jamais deixar alguém falar ou fazer com que eu pareça menor que sou. Eu sou maior! É musicalmente bonito ter o título de senhor, ser chamado de doutor, mestre, ter após o nome, marcado em vírgula, algum adjetivo de honra. Isso nunca me custou perceber.

Certa vez, no entanto, vi um homem gritar. Combalido em convulsão, apontava o dedo na cara do adversário, esbravejando a masculinidade e compondo a vastidão da ofensa que sofrera como sendo incabível e inaceitável; por pouco não bateu no outro. O ofensor disse-lhe palavras desagradáveis. Fim. E eu fiquei intranquilo com todo esse estardalhaço. Não entendi bem o porquê; embora achasse que a atitude de grandeza estivesse certa, incutiu-me uma pulga: “Ele não o agrediu, não o ameaçou, disse apenas inconveniências… Como pode?”. Até que, de súbito, cobriu-me uma concepção e me afastei de todo aquele pudor humano do ofendido. Aquilo era um fraco, um cansado, um idealista das próprias ações — e, lógico, de si próprio. E assim, nesse tom de clareza, fui passando o tempo, ainda que com um gosto amargo na boca. O acontecimento foi sendo esquecido, mas ele ocorria tantas e tantas vezes mais com outras pessoas, outras demonstrações, que me foi fincado quase que à força na memória e na consciência.

Ano passado, dei-me por ler Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Como era de se esperar, adorei. E serviu-me como uma flecha no peito, como uma descrição de minhas ações — como costuma fazer a literatura clássica. Pois, mais uma vez, reapareceu-me essa necessidade humana. Nesse caso, escancarada como fruto de uma paixão ardente pelo projeto de si, Emma Bovary é a descrição exata do homem melindrado. Diante das concepções religiosas e do casamento tradicional, ela parte metódica a uma busca irrestrita ao paradeiro de seu eu digno, rico, poderoso, perfeito. Pula de pretendente a pretendente, de marido a amante, esquivando-se do autoconhecimento; isto é: a cada erro ou feiura apresentado pelo cônjuge que a lembre de sua própria plebe, ela corre e se debruça nos braços do amante passageiro. Assim como o homem que esbraveja ser homem, que não se deixa ofender, assim Emma não deixa que os sonhos morram, que o sonho romântico da felicidade conjugal e da vida luxuosa passe pelos seus olhos. Com medo do espelho, a esposa irrefreável “se empanturrava com a música solene das vésperas, e, por um paradoxo cuja honra toda pertence aos nervos, substituía em sua alma o Deus verdadeiro pelo Deus de sua fantasia, o Deus do futuro e do acaso, um Deus de ilustração”, como bem afirma Charles Baudelaire em sua apresentação da obra.

Vejam bem, não aspiro ter a desfaçatez de fazer deste escrito uma resenha sobre o romance ávido de Flaubert nem sobre obra alguma. Das minhas condições empíricas, o caráter onírico — medroso, como sabem — é o cerne de grande parte das obras literárias. Afinal, a quem cabe, corajosamente, a realidade? Não há raciocínio que suporte. Se a tradição judaico-cristã estiver errada, daí nada suporta mesmo. Boa parte da literatura clássica está inteirada no pavor de si, no medo do podre, do desconhecido. O sujeito é aturdido quando se depara com as revelações: “Mas eu não sou lindo? Como posso não ser? Mas não sou forte? E como pode?!”. Ou pior: “Sou feio?”. O coração então bate excessivo, e excessivamente agitam-se os pensamentos. Aí está a justificativa para o grito e para provar que é maior.

De Flaubert passo ao meu caso. O elogio da mamãe ou o carinho verbal de professores compreende tudo que sou. Claro, é o meu mais profundo desejo; mas continuo inserido nas canalhices, nas irritações, nas brigas, nos pensamentos sujos, um copiador nato das virtudes alheias. Sou o preguiçoso que fala muito e lê pouco. Não, não sou eu a vítima das humilhações, mas o culpado por elas. Dos fios de cabelo aos pés, sou inundado de percepções idealizadas do meu caráter, enfiando a cara, todavia, na realidade da qual não posso fugir. Intragável, mas preferível que não deixe de me imobilizar o fato contra o discurso prazeroso.

Mas ando pensando muito e muito tenho guardado. Perco-me constantemente nessa luta. No quarto frio, solitário, tento tirar a máscara, esta que já me está pegada à cara — como dizem. É uma luta constante. Nasce um tédio tão grande, tão cansativo… quero ser maior! Tento agir, mas dessa vez o discurso é quem me imobiliza; e fico parado, como um enfermo que mantém o corpo estático na tentativa de sobreviver. Fico parado, fatalmente parado, e já começo a sonhar. É uma luta que nunca acaba, nunca se endireita; parece que já a luto há pelo menos cinquenta anos. E então olho para o espelho e a invenção acaba, voltam-me as facetas reais, e eis que estou salvo. Sim, salvo. Ao invés de cair em melancolia contra o fato, sinto verdadeiramente que fui salvo, o que me apraz um pouco. Não sou maior, enfim. Acabei constatando que há duas linhas nessa jornada, a da cegueira e da dura percepção, e elas se confluem numa só. O que quero dizer é que estou sempre a passos curtos nessa enorme linha mista que não tem fim, como aqueles loucos que caminham em uma fina linha de um edifício a outro.

Não à toa, claro, sinto que uma parcela desse pensamento está compactada em Tabacaria, de Álvaro de Campos. Se Madame Bovary compunha a parte cega da linha, é em Tabacaria que a dura percepção é testada e, digamos assim, está em voga. O heterônimo é quase como a Emma que está de cara com o abismo do real e nada pode sonhar para evitá-lo. À pessoa que foi mordida pela dureza — e que há muito sonhou outrora —, basta o contato mais solene e breve com a realidade para recordá-la do mundo terreno e manter-se sem rumo nem vida. Vejam, por exemplo, o relato do poeta:

“Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida”.
Perplexo, acorda amargo diante do fato e compreende-se compenetrado nas tensões. A mente requer amplidão, porém já não há mais intensidade para fugir. Está em uma gaiola minúscula, de poucos passos cambaleantes, rente à cabeça grande, que comporta o mundo inteiro, com a impressão diária do luto. Já não reconhece nada de si, com difícil esforço para chegar em maior sofrimento e maior desolação: no estado de espírito em que descreve, inveja tudo e todos porque algum lapso de fantasia ainda neles se salva. As palavras são rigorosas, por exemplo:

“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?”

Surpreende-se com a impotência evidente de sua angústia. Na angústia adulta. Em alguns meses, também contarei como um adulto no formulário, como um irmão de dor desse pobre poeta. Se fizesse aqui um resumo de minha passagem do nobre reino infantil ao cinzento mundo dos adultos, estaria contando minha maior decepção. É como se o vazio existisse e estivesse crescendo comigo. Sempre achei um absurdo crescer. Comecei a sofrer nos aniversários e lembro-me de que pedia a Deus para que diminuísse os números. Fazia isso meio acuado, com medo do que pensaria Deus sobre mim, pois pedir a Ele era algo que ainda estava aprendendo.

Adorava criar histórias, de todos os tipos. Com dedicação, punha-me a imaginar os cenários e tinha orgulho dos resultados. Em especial, sozinho, brincava com muitos bonecos. Meu pai os chamava de hominhos. Eram muitos; eu tinha muitos hominhos e não deixava nenhuma parte do meu pátio sem pelo menos um. O processo se dava assim: ao chegar da escola, tirava o uniforme, jogava-me sobre um enorme baú e encontrava lá os hominhos. Eu tirava um monte e inundava o pátio com eles. Eu odiava os bonecos grandes, porque não tinha controle deles, mal conseguia mexê-los. E então eu criava. Princesas e heróis, reinos inteiros conquistados e por aí vai. Lembro-me agora de uma coleção de bonecos de luta livre que usava como guerreiros bárbaros. Eram assustadores! Embora apenas brincasse sozinho com os hominhos, as brincadeiras físicas eu realizava com outros. Não sei bem o porquê, mas não só minha mente era muito fértil, como também de todos os meus primos e sentíamos cada um vaidade por nossas narrativas. Eu era quem mais brigava pelos enredos, não gostava de gracinhas nem piadas, pois para mim aquilo era um ofício sério e repudiava quem me dissesse que eu lidava com brincadeirinhas. Justo: não há até hoje ninguém que tenha me vencido.

As histórias heróicas de minha infância marcaram-me de tal maneira que sinto todas as sensações, os ruídos, os barulhos feitos com a boca para simular os golpes, os monólogos, a adrenalina, a textura suada das mãos e a perda de fôlego. Infelizmente, não perdi a criatividade e já não sei que rumo mórbido ela terá daqui em diante. A dor do crescimento, da perda de gosto do chocolate, abate tanto a vida que compreendo aqueles que vivem pelo gosto doce. Compreendo também os que vivem para conservar a força épica dos tempos infantis e que jamais permitirão que mudem sua garra. A fraqueza está no nosso encalço. As pessoas devem ter o que venerar.

Pois percebam, antes de mais nada, minha falta de habilidade ao vos entregar esta crônica. Bom, acontece; não sou o melhor nessas distinções literárias. Permitam-me, por fim, discorrer sobre a vida e o que venho cá espreitando para suportá-la. “Ars longa, vita brevis”. O aforismo largamente conhecido em latim, embora concebido em grego, de Hipócrates, pai da medicina, interessa-me há semanas. Em sua versão extendida, significa: “A vida é breve, a arte é longa, o tempo é afiado; tentar é arriscado, julgar é difícil”. Diante dessa prerrogativa extenuante, há somente duas sortes de pessoas: aquela que recorre à paixão, ama e por ela perecerá de olhos e ouvidos tapados; e aquela que sofre à duras penas a própria consciência… Insubordinado, arrisco dizer que optei pela última alternativa. E, depois de anos, perdi o baú dos hominhos. Não sei que fim deu.

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

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