Desde abril de 2021, foi introduzido no Código Penal o artigo 147-A que dispõe sobre o crime de perseguição (stalking), possuindo a seguinte definição básica: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”. A lei prevê ainda aumento de pena (metade) nos casos da perseguição ser praticada contra criança, adolescente ou idoso, contra mulher nos casos de violência de gênero, mediante concurso de pessoas ou utilização de arma.
O delito tem por objetivo preencher uma lacuna muito importante em vários aspectos, inclusive no contexto da violência doméstica e familiar contra mulher, isto é, criminalizar atos de violência física e psicológica que não estavam abrangidos pelos crimes de lesão corporal (art. 129), de crimes contra a honra (arts 138 a 140), constrangimento ilegal (art. 146) ou ameaça (art. 147).
Nada obstante a necessidade de atualizar a legislação criminal, alguns pontos merecem atenção.
Em primeiro lugar, as reformas pontuais aos Códigos, em regra, produzem alterações assistemáticas, transformando o sistema normativo em uma colcha de retalhos, produzindo contradições gritantes. Esse dado pode ser percebido no posicionamento do novo tipo penal na Seção I do Capítulo VI do Código Penal que dispõe sobre os crimes contra a liberdade (individual e pessoal). Muito embora o crime de perseguição possa até configurar um crime contra a liberdade, na grande maioria dos casos se traduzirá em uma violência psicológica, com afetação secundária ou inexistente da liberdade de locomoção. O ponto central, portanto, estará no reconhecimento de que uma perseguição reiterada poderá causar um sofrimento emocional substancial na vítima que pode ou não resultar em uma restrição de sua liberdade e de sua autodeterminação. Ademais, a posicionamento do crime na Seção I do Capítulo VI do Código Penal também resulta, aparentemente, em um rebaixamento dos danos psicológicos. Em outras palavras, o Código Penal pune de forma mais grave lesões corporais físicas do que psicológicas. Há um aparente tratamento penal mais relevante ao físico do que ao psicológico. E tudo isso se torna ainda mais grave quando observamos o crime definido no art. 147-B que trata especificamente da violência posicológica à mulher, como se a conduta de perseguição (stalking) por si só, já não fosse suficientemente grave.
Um exemplo pode ajudar a compreender melhor. No crime de lesão corporal, se o dano provoca incapacidade para funções por mais de 30 (trinta) dias ou enfermidade incurável (como os casos de transtorno de ansiedade), a pena máxima alcança o patamar de 05 (cinco) anos e 08 (oito) anos de reclusão, respectivamente. No caso do crime 147-A, além de não existir a previsão de incapacidade para funções ou de enfermidade incurável, a pena mais alta alcança o patamar de 04 (quatro) anos.
Esse tratamento secundário ao dano psicológico parece sugerir que a violência (especialmente contra mulher) somente seria objeto de atenção nos casos de derramamento de sangue, encorajando um determinado ceticismo quanto à possibilidade dos danos psicológicos causado às mais saudáveis das mentes, desconsiderando traumas duradouros e a possibilidade de patologias mentais profundas que podem decorrer de anos de subjugação psicológica, fortalecendo, portanto, a manutenção de uma cultura machista e desigual incompatíveis com os valores expressados e tutelados pelo direito interno e pelo direito convencional.
Observe-se que não se está a defender um regime de agravamento de pena, mas sim a demonstrar a diversidade de tratamento existente no Código Penal para danos físicos e psicológicos que, aparentemente, conformam uma contradição decorrente das reformas pontuais.
Segundo aspecto de grande importância está na redação do tipo penal. O legislador caracterizou como criminosa a conduta de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio”, porém deixou de definir com precisão o conceito de perseguição reiterada, permitindo, assim, a abertura de sentido que desafia a relação biunívoca entre o princípio da legalidade e o da materialidade da ação, na medida em que não há certeza quanto ao comportamento proibido. Afinal, quantas ações seriam necessárias para considerar a perseguição necessária? Haveria um período de tempo máximo entre a prática de cada ação? Ou devem as ações serem ininterruptas?
Melhor seria se o legislador tivesse formulado o tipo penal já delimitando no a definição do que se considera perseguição reiterada. A título meramente exemplificativo, na legislação norte-americana, os stalking statue da legislação Federal (Federal Stalking Statute, 18 U.S.C. §2261A) e dos Estados de Ohio (Ohio Stalking Statute ORC 2903.211) e California (California Penal Code §646.9(f)) estabelecem a necessidade de no mínimo duas ou mais ações praticadas em curto período de tempo, com sentido de continuidade.
Outro problema decorre da utilização da expressão “perseguir por qualquer meio”. O verbo perseguir deve ser interpretado no sentido de seguir, assediar, importunar, molestar a vítima. Todavia, o complemento por qualquer meio, se analisado isoladamente, pode permitir o desenvolvimento de propostas interpretativas que possivelmente não estariam relacionadas ao principal intuito da tutela, como a criminalização de ações reiteradas que invadem ou perturbam a esfera da privacidade, mas não necessariamente, se adequam à finalidade da criminalização, abrindo-se espaço, demasiadamente, amplo para interpretações subjetivas e discricionárias.
Em verdade, a perseguição deve ser dolosa, repetida e sistêmica com a finalidade de provocar na vítima um abalo emocional sério decorrente do medo ou receio de sua segurança ou de seus familiares, podendo, os atos de importunação derivar de ações orais, escritas, eletrônicas ou de qualquer outro meio. Há de se observar que o tipo penal não exige elemento subjetivo especial (dolo específico), razão pela qual o intérprete deve buscar compreender se no caso concreto, as ações reiteradas foram suficientes para provocar razoável importunação à vítima.
O crime prevê ainda que a perseguição restrinja a capacidade de locomoção da vítima ou de qualquer forma invada ou perturbe sua esfera de liberdade e privacidade. A redação escolhida, nesse ponto, se apresenta confusa, pois, aparentemente, a restrição da capacidade de locomoção da vítima ou a perturbação da sua liberdade ou privacidade não devem ser efetivamente provocadas pelo sujeito ativo do delito, mas sim constituírem-se em um efeito (consequência) do medo imposto à vítima por meio de uma ameaça crível, séria e grave. Observe-se que, caso o sujeito ativo seja o próprio responsável pela privação da liberdade, mais adequado será a imputação do crime de cárcere privado, a teor do artigo 148 do Código Penal. Da mesma forma, se os atos de importunação se constituírem em uma forma de constranger a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que a lei não manda, caracterizado estará o crime de constrangimento ilegal, conforme o art. 146 do mesmo código que, por sua vez, produz as mesmas contradições acima já mencionadas quanto ao tratamento punitivo existente na lei.
Como se vê, o novo tipo penal provoca contradições no sistema, causará dúvidas interpretativas e permitirá debates em decorrência de sua redação que parece não espelhar a melhor técnica legislativa. A ausência de certa racionalidade da lei penal poderá provocar, simultaneamente, respostas excessivas e deficientes. Em ambos os casos, o maior prejudicado será o jurisdicionado, seja como acusado ou vítima, pois estará sujeito a uma interpretação do direito por demais discricionária.
Esse é o problema das reformas pontuais e assistemáticas: se de um lado parecem atender necessidades atuais, de outro permitem a expansão irracional do direito punitivo causando incerteza e insegurança na sua aplicação. A lei que deveria esclarecer, não esclarece e cobra um preço alto deixando o jurisdicionado à mercê da volatilidade de decisões casuístas.
Comentários