0
 

Uma das mais ousadas operações de espionagem da era Putin foi desmantelada a partir do Brasil. É o que revela a extensa e meticulosa reportagem investigativa assinada por Michael Schwirtz e Jane Bradley para o The New York Times, publicada nesta quarta-feira, 21 de maio. Intitulada The Spy Factory, a matéria detalha como o Kremlin transformou o Brasil em uma linha de montagem para agentes de inteligência com identidades brasileiras falsas, prontos para atuar no Ocidente sob disfarces praticamente perfeitos.

A operação, revelada após três anos de investigações sigilosas da Polícia Federal brasileira, mostra que ao menos nove agentes russos da elite da espionagem atuavam no país com documentos legítimos, mas construídos a partir de identidades forjadas. O trabalho de contrainteligência, iniciado com a captura de Sergey Cherkasov, espião que tentou se infiltrar na Corte Penal Internacional como “Victor Muller Ferreira”, revelou uma rede global que envolvia passaportes brasileiros, empresas de fachada e conexões com universidades e governos estrangeiros.

Diferente de operações de espionagem tradicionais, essa não tinha como objetivo espionar o Brasil, mas sim transformar agentes russos em “brasileiros legítimos”. Uma vez naturalizados, com nascimento declarado em zonas rurais, onde a burocracia é mais frágil, esses “ilegais” podiam circular livremente pelo mundo com um passaporte dos mais aceitos internacionalmente.

Entre os casos desvendados, estão o de Artem Shmyrev, que viveu por seis anos como “Gerhard Daniel Campos Wittich” no Rio de Janeiro, e o de Aleksandr Utekhin, que se apresentava como um joalheiro bem-sucedido chamado “Eric Lopes”. A rede se estendia a Portugal, Noruega, Uruguai, Namíbia e outros países, onde os agentes chegaram a se infiltrar em instituições estratégicas.

Foi a partir do caso Cherkasov, interceptado após alerta da CIA em 2022, que a Polícia Federal lançou a chamada “Operação Leste”. O método foi minucioso e quase artesanal: cruzamento de milhões de registros civis, busca por “fantasmas” (pessoas com certidões válidas, mas sem histórico de vida no país) e análise de padrões em bases de dados públicas e privadas.

As descobertas foram compartilhadas com serviços de inteligência de países aliados, incluindo Estados Unidos, Israel, Países Baixos e Uruguai. Com isso, foi possível identificar vários espiões russos e desmontar o esquema.

O Brasil decidiu expor os agentes por meio da Interpol, registrando-os como investigados por uso de documentos falsos. Foi uma forma legal de alertar o mundo sobre a verdadeira identidade desses operativos sem esbarrar na política da Interpol, que evita envolvimento com acusações diretas de espionagem.

A reportagem do New York Times aponta que a ofensiva brasileira tem um contexto delicado. Apesar de manter relações amistosas com a Rússia, o Brasil foi usado como peça-chave em uma estratégia de longo prazo do Kremlin. Esse uso indevido da neutralidade brasileira foi visto por autoridades como uma traição, o que motivou a exposição pública dos agentes.

O caso também deixa clara a crescente cooperação entre países ocidentais e democracias do Sul Global diante da escalada autoritária de Moscou. Após a invasão da Ucrânia em 2022, agências de inteligência passaram a compartilhar dados com maior agilidade, o que contribuiu diretamente para a queda da “fábrica de espiões”.

A matéria de Schwirtz e Bradley, ilustrada por Lucy Jones e com imagens de Dado Galdieri, expõe a espionagem contemporânea, tornando-a bem real para quem achava que era coisa de cinema. A reportagem também expõe o custo humano da vida clandestina. Mensagens recuperadas entre Shmyrev e sua esposa, também agente russa, revelam frustrações, arrependimentos e até confissões de que “foram enganados” ao aceitar a missão de viver como fantasmas por anos. Parece a série televisiva estadunidense “The Americans”.

Com apenas um espião preso (Cherkasov) e outros sumidos ou de volta à Rússia, o saldo para o Kremlin é negativo. As identidades falsas foram queimadas e seus operativos, “escolhidos” por Putin, estão expostos para sempre. Como resume um investigador brasileiro citado na reportagem: “O que é pior do que ser preso como espião? É ser desmascarado como um”.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

Eduardo Bitencourt Dias lança “Coração Caboclo”

Anterior

Solve for Tomorrow Brasil abre inscrições 

Próximo

Você pode gostar

Mais de Notícias

Comentários