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Parado no semáforo eu o vi caminhar pela calçada. Vestia uma roupa surrada, desgastada pelo longo tempo que deve ter gasto vestindo aquele corpo que, a julgar pela flacidez da pele e pelo branco dos poucos cabelos, aparentava ir além dos 70 anos. Calçava sandálias também velhas, gastas por distâncias profundas e áridas. Trazia nas mãos um martelo e uma chave de fendas, preso à cintura um saco que parecia conter pregos, e por isso tive a impressão de que se dirigia ao trabalho.

Provavelmente não seria um trabalho fixo, seguro, regular. Com aqueles trajes e aquela idade dificilmente estaria empregado. Talvez fosse um bico, um serviço rápido, algo que lhe pudesse render algum dinheiro para vencer mais um dia. Eu não sei porque razão aquele cidadão me chamou tanta atenção, não sei porque fiquei a observar seu caminhar vagaroso enquanto o trânsito me manteve ali.

De repente o vi passar da calçada ao meio-fio e deste ao leito da rua, aproximando-se do veículo à minha frente, com a mão estendida em humildade e vergonha, para pedir a esmola que talvez adequasse a fome ao orçamento. Numa fração de segundos atordoou-me a contradição que eu próprio criara entre as ferramentas e a súplica. Se estava indo trabalhar, por que razão estaria mendigando a generosidade fria dos cruzamentos urbanos?

Não há contradição alguma, infelizmente, logo percebi. Não há nada de estranho ou insólito naquela cena. Muito ao contrário, o que nela existe é uma síntese contundente da pobreza galopante desta cidade, revelada recentemente por um ranking que aponta Belém como a capital brasileira com o maior percentual da população a viver em favelas, 55,49% para ser mais exato.

Cumpre dizer que o tal ranking foi divulgado nas redes sociais sem a exata indicação da fonte, mas há na página do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inúmeros dados de confirmação, atestando aquilo que basta circular pela capital para constatar.

É cada vez maior, fato inconteste, o número de pessoas que, não obstante dispostas a trabalhar e mesmo procurando emprego fixo ou oportunidades esparsas, veem-se compelidas a recorrer ao auxílio das ruas para conseguir sobreviver. Isso é ainda mais grave e triste no caso dos idosos, muitos deles sem contar ao menos com a aposentadoria, inviabilizados e abandonados no momento em que mais necessitam de auxílio, abrigo e acolhimento.

Eles são muitos e estão em muitas das esquinas que cruzamos, derramando sobre nós torrentes cruas de realidade, soprando em nossas faces o bafo quente e mau cheiroso da desigualdade social brasileira, no mais das vezes sem nos causar indignação, compaixão ou piedade, como se estivéssemos cegos diante da vulnerabilidade de um homem perante seus semelhantes.

Em A máquina de fazer espanhóis, uma obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, Valter Hugo Mãe escreveu, referindo-se ao seu Portugal, que “somos um país de cidadãos não praticantes. ainda somos um país de gente que se abstém. como os que dizem que são católicos mas não fazem nada do que um católico tem para fazer. não comungam, não rezam e não param de pecar…”
Alguma dúvida de que o conceito cabe também, feito luva, nesta outra margem do Atlântico?

Aliás, não por acaso, no livro editado em 2010 Valter conta a história de Antônio, um barbeiro aposentado de 84 anos, internado pelos filhos num lar para terceira idade tão logo perde a esposa e passa a viver sozinho. Numa metáfora sensível e eloquente acerca da situação dos idosos, o autor nos faz questionar o tratamento que a sociedade atual dispensa aos mais velhos, vistos por muitos como “pesos-mortos e dispensáveis”, indivíduos sem nome e sem rosto aos quais apenas restos são destinados, quando muito – restos de solidão, restos de companhia, restos de dignidade, restos de comida.

No belíssimo romance há uma passagem impressionante, na qual o protagonista chega ao cemitério para visitar a sepultura da esposa, um dos raros passeios permitidos pelo asilo em que habita, e revolta-se por encontrar flores sobre a lápide, irresignado com a beleza fugaz que jamais conseguiria atenuar a dor da sua saudade: “eu estava sobre o túmulo da laura como por direito próprio, a desfear as flores para que restassem por todo o lado punidas pela beleza que queriam trazer àquela morte. nenhuma beleza havia de ser erguer levianamente diante de mim naquele lugar onde deveria tanger o corpo da minha mulher. nenhuma beleza vestiria aquela brancura para me enganar do vazio da pedra, do frio da pedra, do modo como a pedra nem ouvia nem falava. estes não são os vestidos coloridos da laura, não são os seus modelos delicados com os quais se compunha todos os dias para ser uma senhora como nenhuma outra. estas flores idiotas não podem nada contra o que ela era, não são nada para a dignidade que ela tinha e para o amor que nos uniu.”

A história do cidadão que vi na rua, uma mão segurando ferramentas enquanto a outra pedia esmolas, não contém metáforas, não guarda figuras de linguagem. Nela se pode encontrar, contudo, o mesmo vazio da pedra tumular, a mesma frieza e o mesmo silêncio. Ao invés de uma lápide, esse cidadão tem sobre si toneladas de indiferença e descaso, conquanto a benevolência paliativa de um ou outro motorista, semelhante às flores que o barbeiro aposentado julgou inúteis, possa aquecer-lhe temporariamente o estômago.

Esse cenário precisa mudar urgentemente, e para isso precisamos assumir e expiar as nossas culpas, nossas máximas culpas.

*(as citações de Valter Hugo Mãe estão em minúsculas porque assim o autor optou por escrever o livro)

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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