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O que mais gosto de apreciar, o que mais me chama a atenção são os rostos das pessoas, seus semblantes, a expressão que cada uma delas traz no olhar. É como se todas transparecessem verdade, como se naquele momento fosse impossível esconder, desnecessário dissimular; como se todas se tornassem transparentes, deixando estar à superfície, sem medo, pudor ou vergonha, aquilo que realmente são e sentem. Gosto de tentar perceber o que há nessa essência desnuda, nesse encontro bonito e místico, nessa entrega tão cheia de fé e expectativas.

Gosto de estar ali, de sentir aqueles cheiros, de ouvir aqueles ruídos, mistura de música e clamor, hino e oração, burburinho e soluço, barulho de choro. Gosto de ver as luzes da noite ou os raios do sol a refletir na água docemente salgada que se acumula nos olhos encharcados, e que escorre pelas faces como a lavá-las, deixando-as limpas, remoçadas, revigoradas até.

Muito me apraz testemunhar o espetáculo de amor que acontece em cada um, e que é único, inigualável, incomparável. Vem de dentro, é personalíssimo, mas de tão grande parece não caber no indivíduo, eclodindo coletivamente em gestos de carinho e bem querer que encantam, nos mais das vezes abraços calorosos, afagos sinceros e votos verdadeiros que sempre desejam o melhor.

Fico a imaginar o que cada um leva dali, o que cada um carrega consigo como tesouro. E onde guardam aquilo que levam, como cuidam, como zelam pela riqueza conquistada, que sensações experimentam. Paz, perdão, cura, esperança e gratidão. Alguns pedem, outros agradecem e ambos são muitos, milhares, milhões, todos devotos, todos súditos, todos tocados pela majestade sublime que passeia enfeitada e radiante num momento mágico e singular em que o divino se mistura ao mundano e o que é celestial se permite ser terreno.

Ali o céu toca a terra. Ali é possível perceber, com estonteante nitidez, o etéreo a se materializar. Ali a fé é palpável, real, objetiva, existe enquanto coisa perceptível aos sentidos, dotada de cor, cheiro, sabor e textura, som que se faz ouvir. Ali, fora dos templos e distante dos rituais, a fé se torna simples e se deixa ver, toma forma de multidão e corre pelas ruas como corre o sangue pelas veias, oxigenando, mantendo a vida, lembrando o quanto ela é valiosa.

Outubro já se achega, seus sinais já podem ser vistos. Em poucas semanas Belém será palco, mais uma vez, de um dos maiores fenômenos do mundo, o ducentésimo trigésimo primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré, renovando a força infinda de uma tradição secular de afeto e devoção. É daquelas coisas difíceis de explicar, superlativas demais para que sejam conceituadas – como diz o lugar comum, para compreendê-lo é preciso vê-lo, é imprescindível dele participar.

Outubro já se achega, e em outubro a Santa passa, a Santa caminha entre nós, em meio ao povo em procissão, e eu estarei lá novamente, para ver resplandecer no rosto das pessoas, na expressão que emana dos olhos que enxergam a berlinda, aquilo tudo que ao longo do ano a rudeza da vida vai nos fazendo esquecer.

Há na fé uma beleza inescrutável, e não há no mundo exercício maior de fé do que o Círio. Viva Nossa Senhora de Nazaré! – ao longe já consigo ouvir: viva, viva, viva…!

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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