Publicado em: 17 de abril de 2025
Depois de um tempo sem escrever por inibições internas e de crônicas que ficaram pela metade, engavetadas, eis que finalmente me surgiu uma temática que achei por bem dissertar. Estava hoje na academia e uma senhora que jamais me cumprimenta, embora há anos nos esbarremos em academias diferentes destas proximidades (desde que eu era estudante de psicologia), me solta: “- Eu sempre a vi magrinha, quando vi esses tempos nem reconheci. Pensei: não pode ser ela!”.
Na hora, sorridente, respondi: “- é que antes eu tinha 18 anos”. Mas ela, não tão contente, insistiu: “Não, mas um tempo atrás, ainda nessa academia, eu ti vi e tu estavas magra”. A profissional que me acompanha logo exclamou intimamente comigo, de como o comentário era desagradável e desnecessário e eu, que até não tinha me importado, fiquei pensando sobre isso – até mesmo porque nem sempre a gente está pronta para o que vem.
Não vou falar de saúde física, depressão ou qualquer coisa que tente justificar meu aumento de peso. Ele é meu e não diz respeito a ninguém. Até mesmo por não querer reforçar que estar acima do pesou ou gorda seja algo negativo, feio. Porém, foi impossível não lembrar da cena de quando engordei alguns quilos – não estava tão magra quanto antes, mas ainda assim com a metade do peso que estou agora – e um familiar me olhou e, antes mesmo de me dar um abraço e me cumprimentar, fez gestos como se eu estivesse tufada. Fiquei super constrangida e percebo que até hoje sempre que vou o encontrar, me vejo ansiosa se virá algum comentário ou se vou ser lida como alguém que está inadequada ou se ele está me achando feia, mesmo que racionalmente e fatidicamente pouco me importe sua opinião, até por ser alguém que pensa tão diferente de mim.
Logo então, compartilhei com meu grupo de amigas e uma dela comentou sobre a inconveniência das pessoas. Recente uma criança fez um comentário super “ok” no elevador, que o piercing dela parecia com o de uma tia. Mas diferente da naturalidade infantil, que não vem carregada de comentários ácidos e com intuito de diminuir o destinatário, em outras situações os comentários sobre o tal furo no nariz foram indagações do tipo: “- por que você fez isso?” ou “como você consegue namorar?”. Não posso me furtar do comentário irreverente de quem estava de bom humor e conseguiu ser cirúrgica sem dar grandes patadas: “- Provavelmente namoro como a senhora” e o simples e óbvio, “fiz porque estava a fim”.
Outra amiga que sempre perguntam se está gestante, contou de uma colega de trabalho que cortou um momento descontraído entre amigas e amigos rindo e soltou: “- Você está engordando” (Pausa para resposta dela: “eu tenho espelho em casa”) ou de parentes que insistiam: “´Já chega de tatuagem!” ou “Já tá bom de filhos!”. Eu poderia me delongar muito mais, no consultório os namorados e marido são campeões em tentar legislar o corpo das companheiras, quando não, avacalhando sua massa corporal ou como se vestem, ou até mesmo criando mecanismos de insegurança ao tentar incitar rivalidade feminina, com comparações descabidas e desrespeitosas.
O fato, caras leitoras (e espero que também caros leitores), que o corpo lido como de mulher é um corpo que estará sempre sobre a métrica patriarcal, é um corpo que deve seguir um protocolo para agradar o público masculino e lembrar as mulheres do espaço que devem ocupar, o de docilidade e passividade, senão o de reservada ao lar.
Nessa lógica, as pessoas – a estranha da academia, a tia distante, a colega de trabalho, a feirante, o namorado, o marido – se sentem autorizados a avaliar pelas lentes do patriarcado, fiscalizando cada gesto, expressão ou quilo fora da curva. Enquanto os homens se beneficiem e destilam violências psicológicas, para vulnerabilizar suas companheiras e adestrar aos moldes que eles querem exibir ou consumir, mulheres seguem sendo fiscais com suas línguas afiadas sem perceber que a trama as quais são recrutadas como soldados alienados, também as afeta diretamente.
Quais corpos são fiscalizados? Será que homens carecas e acima do peso, peludos ou sem pelos são interpelados da mesma maneira? Percebam que há uma lógica de domínio e de enquadre aos valores normativos e opressões, uma espécie de domesticação de corpos de mulheres: afinal, aquelas com piercing e tatuagens são ameaçadoras e transgressora, as gordas fogem o padrão da objetificação para consumo masculino, e a quantidade de filhos (da natalidade) tem sido, historicamente, uma forma de controle de estado, já nos ensinava Foucault, ao falar de biopoder.
Além disso, piercing, tatuagem, peso e até mesmo a quantidade de prole acabam sempre avaliados pelo entorno, como se não coubesse a própria mulher o domínio, apropriação e autonomia de si, deste corpo que, quando convém, deixa de ser privado para ser manipulado por todos outros, cheio de opiniões, com suas leis e mecanismos de coerção, desautorizando sua própria autoridade e gerência sobre si.
Sim, caso mulheres não correspondam a lógica esperada, serão sempre lembradas e punidas, com piadas, com comentários públicos de exposição e com violências. Pouco se importam em como vão se sentir, se afetará sua saúde mental e até com seus projetos e opiniões, mulheres são tratadas como objetos e não sujeitos.
E um adendo, mesmo para as que lutam contra as violências patriarcais, não é fácil ser um corpo alvo (e nem estou fazendo as intersecções de raça, classe, sexualidade, etc) que está sempre fiscalizado e lembrado de seus desvios à norma. Percebam como há inúmeras estratégias para deprimir mulheres, fazerem se sentirem menor ou inadequada. Junto com isso, a teia capitalista que lucra com sofrimento feminino, colocando a estética à frente da saúde, tirando seu tempo de investimento em outras pautas e consumindo seu dinheiro, colocando-as em situações menos favoráveis que os homens.
Gostaria de dizer para minha colega que estou feliz com a minha vida, que estou indo para meu quarto livro publicado, que tenho tido experiências lindas com alunas e alunos e que me deixam muito realizada, que pari duas crianças lindas, que meus seios amamentam há quase quatro anos, que eu -depois de muito tempo – consegui juntar um dinheirinho para viajar a família toda, que fiz um curso de escrita muito sensível, que tenho alguns momentos de muita angústia também, aliás cada palavra dita errado me consomem imensamente e que estou planeando o pós-doutorado…, mas não deu, fiquei resumida ao meu ganho de peso. Ela nunca vai saber se me acha interessante ou não, nem como falo demais quando bebo muito ou que adoro dançar até o chão, que gosto de ler romances, amo cinema e comer fora e que costumo me importar muito com as minhas amigas. Eu também pouco sei dela, só sei que ela malha há anos, bastante, e que fez um comentário sobre o meu corpo. Provavelmente, nunca saberemos uma sobre a outra, das dores, trajetórias, amores…
Óbvio que se estou escrevendo aqui, estou usando o recurso da escrita para elaboração, para não sucumbir as tramas desse cenário que obviamente afetam minha autoimagem e autoestima, mas sobretudo tentando dar outros destinos, ao chamar você para pensarem comigo e transformarem ataques em resistência, em reflexão crítica, militância, possibilidade de fazer diferente. Ao invés de dar resposta embaixo do chuveiro, preciso para não enlouquecer….ser lida, tal como tenho lido em “O perigo de estar Lúcida”, de Rosa Montero, gentilmente indicado por Camille Castelo Branco, em um “clube de leitura”. Escrever e trocar com mulheres me ajuda um tanto, me salvado de alguns aprisionamentos internos. Espero que ajude vocês também.
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