É consenso nos estudos de cultura, nas mais diversas áreas de conhecimento, a constatação das estratégias de domínio sobre o corpo feminino. Diante de diversos discursos religiosos e médicos, o controle da sexualidade feminina sempre foi um caminho para manutenção de relações de poder.
Na cultura hegemônica, padronizada pelo poderio colonial europeu, a virgindade da mulher ocupou, por muito tempo e de alguma forma ainda hoje ocupa, um status de controle social, ganhando significado de valorização, a partir do formato relacional de amor romântico e monogâmico – que acaba sendo relegado apenas às mulheres.
Isto porque o modelo capitalista difunde a ideia de quanto mais exclusivo, mais único, mais valoroso. Fato que transborda das mercadorias materiais (bolsa, carro, casa, viagens) para a mercadoria-corpo, que passa a ser objetificada.
E se em um passado mulheres eram objetificadas em uma troca patriarcal em casamentos arranjados (do pai para o marido), que visavam interesses financeiros, logo o deslocamento em nome do casamento por amor, mantém alguns pontos em comum, a ideia de que o valor de uma mulher está na castidade, que será doada como um troféu para a pessoa eleita como especial, o homem, que deve sempre ser bem servido.
Há, portanto, uma educação sexual desigual, na qual se estimula meninos a competição e poder, oferecendo estímulos e práticas sexuais violentas, desde a infância (conteúdos pornográfico, a forçada iniciação sexual com profissionais do sexo, etc), assim como a autorização da vasta experiência sexual, mesmo em relacionamentos estáveis, cuja responsabilização sempre recai sobre uma mulher ( a “outra”, “quem provocou”, quem fez o “papel de homem”).
Nesta lógica, o corpo da mulher passa a ser visto como um território, objetificado. Se o Brasil foi invadido por colonizadores com o discurso de descoberta, o mesmo se dá no corpo feminino. Ora, vejam bem, o próprio Freud, um homem europeu, lá em 1905, já nos dizia que a sexualidade está conosco desde que nascemos. Ela faz do nosso corpo um corpo libidinal, com zonas erógenas que passam desde a via oral até, em determinada fase do desenvolvimento, chegar a genital. (Um parêntese, o próprio Freud reconhecia os efeitos psicopatológicos para repressão da sexualidade feminina e alarmava sobre a dupla moral, hipócrita, dada aos homens).
Sendo assim, não há nenhum campo inabitável, esperando para ser descoberto. Há um corpo com sexualidade e com etapas de desenvolvimento – logo, deveria ser um direito para as meninas poderem explorar, conhecer, antes de autorizar compartilhar este corpo com outro alguém.
Essa ideia de domínio, dos homens se sentirem e se autorizarem a serem donos dos corpos femininos, se desdobra no maior motivo de feminicídio hoje, sob a simplista e romantizada justificativa de ciúmes. O objeto-território-corpo tem proprietário e ninguém pode invadir as terras. O corpo feminino se torna um campo de disputa entre homens, com as suas masculinidades. A mesma coisa acontece quando homens se sentem autorizados a invadir terras que estão sem donos, como se o território tivesse mais vulnerável a ser violado por ainda não ter proprietário: terra sem lei – como vemos nas violências sexuais que sofremos. Só para ilustrar, lembro do término de meu primeiro casamento que precisei escrever no livro de ocorrências do prédio que recentemente havia me mudado para que porteiros não me chamassem de princesa, pois até então se sentiam no direito, já que morava apenas eu e minha filha, ainda criança.
Controlamos nossas meninas a não conhecerem seu corpo, fazemos sentir vergonha, culpa ou medo do prazer. Esta forma de controle faz com que mulheres se submetam ainda mais a passividades nas relações, como se homens fossem sua salvação. Nesse sentido, o orgasmo além de político é revolucionário, pois garante autonomia, afinal mulheres que gozam como querem, tem mais chances de fazer escolhas e não aceitar qualquer homem pelas condições sociais – desespero, carência, medo da solidão, enfim os ditames sociais que afirmam que só temos valor em referência a um homem que nos legitime.
A liberdade sexual das mulheres não é um problema para elas, mas sim para os homens. Há estudos que demonstram que o desejo por mulheres novas e sem experiência sexual passa por alguns fatores: 1) facilidade em manipular e controlar alguém sem experiência; 2) não ser comparado com outros homens, inclusive no desempenho sexual (então, não preciso me preocupar sequer com o prazer da mulher) e 3) ter um troféu, pois minha mercadoria é exclusiva. Percebam que o item 02 e 03 fazem parte, novamente, da relação entre homens.
A ideia de que a mulher perde algo, seu valor e seu poder deveria ser combatida, inclusive por pais e mães na educação de filhos e filhas. Não há perda. Essa ideia está articulada a uma moral sexual criada sociohistoricamente nas relações de poder. Há uma nova etapa da fase de desenvolvimento, em que a mulher passa a dividir com outra pessoa sua sexualidade e inicia os atos sexuais com parceiros/as. Como outros aspectos do desenvolvimento da infância, adolescência para vida adulta.
Ao invés de criarmos meninas com medo do próprio corpo, imagine falar de sexo de forma saudável e como saúde? Imaginem falar sobre respeito e consentimento? Imaginem apresentar formas de proteção e de prevenção de gravidezes não intencionais? Imaginem meninas podendo ter prazer com seu corpo?
Quando o valor da mulher está apenas em parte do corpo (hímen), o resto deixa de ser importante: sua personalidade, escolhas, gostos, intelectualidade, formas de ser. Ensinamos meninas que o mais importante nelas é o recato e não quem elas próprias são. Ensinamos que assim vão receber valor, o que a doutora e psicóloga Valeska Zanello chama de “empoderamento colonizado”: um valor tido como positivo, que parece dar poder, ao passo que retirar o poder, mantem inseguranças e vulnerabilidades, ao colocar mulheres nas égides patriarcais.
Para quem não sabe, o sangramento do hímen só ocorre porque mulheres ficam tensas e apreensivas, deixando músculo da vagina rígido. Iniciar o compartilhamento da vida sexual com outra pessoa não deveria doer, nem sangrar. Inclusive já há estudos constatando que o rompimento do hímen é uma falácia, como disse, o sangramento tem a ver com tensão. Além do que, já está mais do que na hora de entender que sexo não é só penetração. Quantas meninas transam, sem penetração, para continuarem “virgens”? Sexo é troca.
Precisamos romper com associação a sexo para meninas como perda, derrota, dor, culpa e dominação masculina. Sexo não deveria ser a legitimação do poderio masculino, mas sim fruto de uma relação responsável entre pares que se desejam, se respeitam e querem estar juntos. Sexo deveria ser sinônimo de saúde e vida, de escolha e de autonomia e de gerência sobre si. Eduquem suas meninas para terem autoestima e não para serem vulneráveis ao patriarcado. Eduquem seus meninos para respeitarem seus corpos e os das parceiras, para que não vejam as meninas como um território a ser dominado. Comecem abandonando a ideia de virgindade. A geração futura agradece.
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