Publicado em: 2 de junho de 2025
Recentemente terminei de ler o livro “Objeto Sexual” da Jessica Valenti, uma escritora feminista americana. No livro, ela narra as fases de sua vida, com as passagens de relacionamentos, demonstrando como desde cedo, foi objetificada e submetida a violências de gênero, especialmente a violências sexuais.
Sem papas na língua, ou melhor, nos dedos, a autora escreve francamente suas vivências, longe da moralidade que nos cerceia a falar da “vida de verdade”.
Sua narrativa crua e direta, quase como um corte, demonstra como o assédio sexual chega ainda na infância, mas também como nos habituamos a ser objetificadas, sendo muitas vezes tratadas sem o mínimo de respeito e alteridade que a humanidade requer para estabelecimento de laços dignos. As violências sexuais abraçadas em violências psicológicas, fazem com que o corpo também possa se tornar uma via para autodepreciação, fato que não precisa de grandes esforços, porque os homens estão sempre de prontidão quando o assunto é usar o corpo feminino. E isso é possível de ser constatado no livro, seja pelo abusador do ônibus, seja pela coletividade da casa dos homens, que não se envergonha em expor uma jovem publicamente a situações vexatórias e de humilhação.
Além disso, o livro traz suas experiências com abortamentos, parto, prematuridade e as inseguranças de ser mãe – demonstrando a complexidade que é sustentar um corpo de mulher.
Mas trago essa indicação de leitura porque me peguei, em algum momento, me perguntando se ela romanceou, ou melhor, inventou tudo ou parte do que escrevia. Em algum escape, cheguei a pensar que não era possível uma mulher só, passar tanta violência.
Eu, que sou feminista e que luto para credibilidade das narrativas femininas, me vi quase deslizando no que eu própria critico – fato que só demonstra a importância da vigilância e o como a cultura patriarcal é uma forte sombra sobre nós. Embora também suspeite que meu movimento se deu por certas defesas psíquicas. Explico. Ao ler fui convidada a pensar em mim (ler mulheres sempre é um convite a olhar pra si), e aqui compartilho com vocês algumas angústias: várias vezes já me peguei questionando minha própria narrativa, “será que eu invento tudo isso?” ou “será que dramatizo muito? Que são minhas lentes que são assim?”. Afinal, quando comecei a escrever crônicas fui chamada de vitimista, de manipuladora e até de estar fazendo “machismo reverso”, como se usasse o feminismo pra me vingar de alguém que me fez mal, distorcendo histórias.
Em outros momentos, também fui assaltada pensando: “nossa, como fui azarada, não pode ser que tanta coisa tenha acontecido justamente comigo”. E no jogo de culpabilizações, já cheguei a pensar se algo de proteção faltou na minha criação (fato que faria responsabilizar familiares) ou nos meus próprios recursos internos, como se eu fosse sensível, dramática ou problemática demais.
Mas foi lendo esse livro que me deu um estalo, um insight. As lentes feministas nos fazem ressignificar nossas vivências, assumindo, nomeando, descortinando e revisitando fatos desde a infância. Não tem como “desver” e é como se um amontoado de cenas e afetos pudessem ganhar novos deslizes de sentidos.
E não, não sou nenhuma escolhida, amaldiçoada ou privilegiada, sou apenas uma mulher. Foi lendo o livro que reafirmei e constatei que na intimidade da história de cada mulher há marcas, muitas sequer reconhecidas ou nomeadas, enterradas na memória ou em permanência nos pactos de silêncio.
Por exemplo, meu primeiro namoro foi algo bastante atípico, era uma pessoa violenta e com muitos problemas, mas a marca de ser uma mulher submetida a violências começou antes mesmo dele.
Seu início foi vivenciando um assédio na rua, nos colegas de escola – com 10, 11, 12 anos – que simulavam masturbação quando nos olhavam em plena sala de aula e ninguém via, no primeiro beijo que um rapaz muito mais velho que eu (maior de idade), mesmo após eu dizer que não, me emprensou na parede me “obrigando” a beijá-lo e eu sem ter recursos e condições para evitar e me proteger (depois disso, eu saí correndo e me escondi por dias, com pavor de encontrar com ele novamente, além de sentir muita culpa e não querer contar pra ninguém).
Lembrei de outra vez, quando já tinha uns 17 ou 18 anos, que cheguei no prédio e o porteiro me passou um bilhete com um nome e telefone, com uma mensagem pedindo para que eu ligasse. Obviamente, sem entender nada, não liguei. Até que tocou meu interfone, era um vizinho recém morador do prédio, alguns bons anos mais velho que eu. Perguntou se eu havia recebido o bilhete e eu disse que sim e depois de indagar o porquê eu não retornei, pediu para que eu subisse ao seu apartamento, recebendo uma negativa. Não contente, tocou a campainha de casa, tentou me beijar no corredor. Dessa vez, por sorte, consegui sair “ilesa”.
Anos depois, ele comentou com uma amiga minha de faculdade que eu já tinha sido muito bonita, mas que agora estava gorda.
Nem vou fazer grandes interpretações sobre esses fatos que, honestamente, apesar de violentos e absurdos, não me deixaram grandes marcas.
O que quero demonstrar aqui é que assédios são práticas corriqueiras nas histórias das meninas, das jovens, das adultas, das idosas.
Foi lendo que não me senti só e vi que não sou uma estranha no ninho, mas que há muitas como eu e que a gente só não dialoga e compartilha as coisas que vive, portanto não sabe uma da vida da outra. E como foi importante ler. Uma história narrada pode ajudar muitas outras histórias a terem outros destinos.
Parar para mapear e pensar nas nossas vivências não é simples e é doloroso, mas somente quando entendemos nossas histórias e nomeamos as nossas vivências, podemos nos fortalecer em enfrentamentos e em lutas para que fatos não se repitam, especialmente com as nossas crianças.
E, para aquelas que somam violências que as devastam, sintam-se abraçadas, saibam que o problema não está em vocês. Que possamos responsabilizar os agressores e que a sociedade (e a macharada) possa criar novos caminhos para as masculinidades. Por aqui, nós feministas faremos o possível para acolher mulheres e para que elas aprendam a reconhecer perigos e possam se defender, mesmo que para isso precisemos expor nossas histórias publicamente.
Por isso, deixo um salve para Jessica Valente, que mesmo tão longe, vi nossas histórias se cruzarem, e para todas aquelas que tem condições e conseguem gritar suas histórias por aí para politizar nossas existências e tentar sensibilizar a sociedade para um “Pare!”. Leiam autoras feministas, gente. Inclusive vocês, homens.
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