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Os crimes de violência sexuais contra as mulheres têm uma especificidade muito cruel: são os que as vítimas passam a ser condenadas e os agressores desresponsabilizados. “Para a vítima, a culpa, para os homens, a desculpa” (Valeska Zanello, 2018). Nesta semana assisti três casos: 1. Um em Belém, de uma moça que ao denunciar a importunação sexual em um bar não recebeu apoio algum do estabelecimento e, “de quebra”, recebeu uma série de comentários questionando a veracidade de sua fala, além de associações a oportunismo e indagações sobre ficar em casa; uma denúncia de uma passageira em translado de ônibus São Paulo-Rio que sofreu importunação e teve TAMBÉM a negligência da empresa e de policiais, que não contentes ainda divulgaram seus dados nas redes sociais e uma nota de esclarecimento e repúdio revitimizante e o caso do Daniel Alves, que apesar de todas as provas, de mudanças do depoimento do agressor, houve impunidade.

O pacto da impunidade da violência contra as mulheres é um pacto da masculinidade atrelada a cultura do estupro, na qual homens defendem-se entre si das mais diferentes formas: tratando como desimportante, não se implicando, utilizando de ferramentas institucionais, de espaços de poder para proteger homens e desempoderar mulheres. Para se favorecerem não há contenção de energia: são usadas todas as estratégias, mesmo que essas signifiquem adoecer uma mulher. E o mais triste de tudo isso é que não é preciso muito, afinal em uma cultura machista, de base patriarcal, muitos aliados desconhecidos engrenam o caldo, basta jogar no mundo.

Lembro do primeiro texto que li sobre Cultura do estupro, no livro “Feminismo, além das redes sociais”. Nele, as autoras demonstravam como a condenação em casos de estupro, além de mínimas, tinham a ver com relações de poder. Homens poderosos, mesmo com todas as provas possíveis, não são condenados, ao passo que a depender da classe e cor pode haver condenações. Aliás, a fetichização e objetificação feminina é uma realidade para nós, que começa na infância, mas que também se revela na subnotificação, por tantos motivos, como medo, vergonha, julgamentos, revitimizações, ameaças, ataques e novas violências.

E é importante destacar que em sociedade sexista, que se fundou sobre a violência de gênero e raça a partir da importação dos modelos coloniais patriarcais, mulheres podem colaborar no julgamento e violência contra outras mulheres, embora elas não vão se beneficiar com o machismo, ao contrário. Isso porque há um processo de subjetivação propagado pelas mais diversas instituições, como a família e a igreja, que nos doutrinam a naturalizar violências de gênero. Logo, o patriarcado cria mulheres com funções sociais para sua propagação, com a lógica do casamento, maternidade (sobrecarregadas, vigiadas e avaliadas pelo seu desempenho na educação infantojuvenil, também medidas socialmente por papéis de gênero), por isso a importância dos feminismos, para criar pensamento crítico, ao desnaturalizar opressões e criar estratégias de enfrentamentos para elas, como a união entre mulheres e a mobilização da opinião pública.

Ainda semana passada, uma jornalista alegou a culpa do feminismo por não incluir os homens no debate. Até acredito na boa intenção, quando ela desenvolve a problemática da masculinidade, mas o que a autora esquece é que: 1) Dos estudos feministas saíram os estudos das masculinidades; 2) os movimentos feministas estudam RELAÇÕES de gênero e se propõem o diálogo com a sociedade como um todo, inclusive com medidas preventivas e educativas nas escolas, como até mesmo aparece em leis, fruto da luta de mulheres, como a lei Maria da Penha.

A frase de que o “feminismo errou” é complicada porque além de reforçar o estereótipo de que feministas odeiam homens, ignora a luta do movimento para transformações sociais e reforça a ideia de maternagem feminina, que mulheres devem estar ensinando os homens. De qualquer forma, pois infelizmente até já fazemos isso, o que devemos questionar são as construções sociais e relações de poder que fazem de o mundo tão difícil para minorias sobreviverem, como nós, mulheres – especialmente as pretas. Ora, é sobre as relações de poder, as masculinidades e a dominação de homens com repúdio ao feminino que precisamos dialogar. Os casos acima demonstram que há um aparato institucional, legal e organização social de homens que não querem renunciar a privilégios, nos quais eles incluem o acesso ao corpo feminino, como objetos a serem utilizados e fetichizados. Para alguns, não há interesse em se aliar a causa de combate enfrentamento a violências de gênero porque há uma resistência de retirar-se do centro, do lugar de sujeito universal e reconhecer mulheres como pares.

Não dá para culpar um movimento de mulheres que busca fissurar a normativa social, problematizar e questionar o tido como normal, como essência, como natureza, que enfrenta leis e fissura esse cenário tão adoecedor para nós, mulheres. É preciso ser enfática, sempre, sobre a importância dos movimentos sociais feministas, estar sempre em defesa de.

No primeiro caso que citei, dois comentários de internautas me chamaram atenção: o primeiro perguntava por que a mana saiu de casa, podia ter comemorado aniversário em casa, o segundo indagava o porquê não trocou de bar. Percebam que ambas as argumentações reforçam o lugar da mulher ao privado, a passivação, domesticação, ao lar. As ruas, públicas, não são para nós. Se estamos incomodadas com a violência, somos nós que devemos sair do lugar, não os assediadores. Se estivermos dançando então, bebendo ou em um lugar de paquera, o julgamento é ainda pior. Somos nós que devemos nos cuidar e não os outros que não devem “se aproveitar”. Não importa roupa, idade, provas, denúncia – somos violadas. O caso do Daniel Alves passa esta mensagem: não basta denunciar e comprovar. Eles não têm medo nem da repercussão em cenário globalizado, eles fazem porque podem.

O mesmo se faz com a narrativa, falar em voz alta na televisão, no instagram, aonde for, é se expor para sofrer ataques e violências. Um verdadeiro canibalismo narrativo, como nos ensina Rebecca Solnit. É cansativo demais. Ontem, em um curso de escrita, ouvi que uma escritora afirmou que não queria mais trabalhar com suas cicatrizes. E sim, como é difícil carregar esse corpo de mulher, como é difícil escrever mais uma vez sobre o mesmo tema.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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