O filme “Anatomia de uma queda”, dirigido por Justine Triet, teve sua estreia mundial no Festival de Cannes em 2023 e, desde então, recebeu várias premiações: Palma de Ouro, Globo de ouro para melhor atriz e roteiro original, prêmio Goya de melhor filme europeu, Oscar de melhor roteiro original, dentre outros. Em relação a sinopse, a trama se desenvolve em torno de uma situação, na qual é encontrado o corpo de um homem, encontrado morto na neve, ao lado de fora de um chalé isolado onde vivia com sua esposa Sandra e seu filho, um pré-adolescente de 11 anos e com deficiência visual. Devido a dúvida do motivo de sua morte (assassinato ou suicídio?), a viúva passa a ser indiciada como suspeita, fato que envolve diretamente seu filho como depoente.
Mas por que trago este filme para esta coluna? Novamente, pelos meus atravessamentos. Tive uma identificação imediata e visceral pelas nuances da maternidade. Um verdadeiro engasgo, um choro preso na garganta. Com um desejo enorme de abraçar aquela mulher, tão diferente de mim por ser de outra cultura, mas tão próxima pela condição materna. A outra identificação foi com algo que é comum que aponte nas minhas escritas, mas novamente presente: o tribunal condenatório diante da narrativa de uma mulher e os recursos utilizados para desqualificar a imagem feminina.
Assisti o filme no Libero Luxardo e ao acabar, encontrei uma pessoa que me perguntou: e aí, tu achas que ela matou ou não? Em seguida, fui ao banheiro feminino e a conversa girava em torno de duvidar do relato da criança, pois supostamente ela poderia estar mentindo, para defender a mãe, escutei também questionamentos sobre sua sua capacidade de discernimento pela deficiência visual (e aqui, poderíamos pontuar como a cultura hegemônica patriarcal é capacitista, se sustenta na exclusão dos ditos diferentes de si, enquanto norma).
Senti uma indignação tão grande… Essas cenas da vida real – que penso ser justamente o que o filme se propõe a provocar a quem assiste – estão em consonância com a literatura sobre violências: a narrativa de mulheres e crianças (nesse caso, com o atravessamento da deficiência) não são levadas a sério, sempre são questionadas como tendenciosas, mentirosas, manipuladoras, desvalidadas. Tratam-se crianças, adolescentes e mulheres como objetos e nunca como sujeitos.
Ontem assistia ao documentário sobre Eliza Samudio e a cena é a mesma. Devido uma imagem veiculada pela mídia de “maria chuteira”, de aproveitadora e promíscua, após ter tido sua vida sexual pregressa exposta de maneira moralizante, todas suas denúncias – inclusive de crimes de violência contra as mulheres que se somavam, como de sequestro – foram ridicularizadas, minimizadas, descartadas e, por fim, negligenciadas de forma que ela tem sua vida ceifada pelo feminicídio. Mas, o mais assustador foi assistir a jornalistas, apresentadores/as de televisão, com perguntas que questionavam o exame médico legal que constatava lesão corporal, perguntando se ela própria não podia estar causando autolesões para culpabilizar o goleiro (assassino) Bruno.
O filme que já tem um título que carrega polissemia de significados, pode se referir a anatomia como um processo de investigação de um corpo, mas também pode demonstrar como a anatomia feminina (nós, mulheres) tendemos a cair em casos conflitivos, sendo culpabilizadas quando houver espaço.
A personagem não corresponde ao estereótipo de feminilidade – nada de delicadeza, grandes dedicações aos cuidados do lar ou maternagem, recato ou culpas – e este fato é interessante, pois também provoca desconforto para algumas pessoas que assistem. Facilmente, pode ser vista como egoísta ou má, sendo esta uma estratégia do judiciário para defender sua suposta culpabilidade. Entretanto, este filme tem a cena emblemática de sua coerência e maturidade ao discutir com o marido e o convidar para enxergar seus próprios limites e se responsabilizar por suas escolhas, que estavam atreladas ao seu funcionamento e questões existenciais.
Então, ver uma mulher autônoma, bem-sucedida, que não faz questão de ter os cuidados do lar como o foco central da sua vida, (“uma mulher difícil”) já é motivo suficiente para se incriminar uma mulher, sendo, portanto, um dos elementos utilizados para buscar sua condenação. Muito rapidamente, encontramos uma mulher com espaço inexistente para o luto e com sua intimidade exposta, em um processo violento que afeta diretamente sua relação mãe e filho. E foi neste ponto que engoli choro. Me pareceu uma tortura psíquica precisar narrar na frente de um garoto de 11 anos, intimidades que não deveriam fazer parte de seu universo de conhecimento e que poderiam ser sentidas por ele de forma violenta, com impactos e efeitos psicológicos individuais, mas também na relação de parentalidade. Imaginei o trauma de perder o pai e, junto com isso, precisar perder a confiança e segurança da figura materna. E foi o olhar dela diante da preocupação e sofrimento que estavam sendo submetidos (e a pouca preocupação e descaso institucional que chega a ser injusto para alcançar seu fim) que me dilacerou, fazendo sentir essa dor.
No filme, diante da falta de provas, há relatos. Fiquei pensando ao que leva pessoas a não acreditarem nos relatos de quem estava lá. O que poderia fazer duvidar de um relato de existência, se não há contrapartidas sólidas? Lembrei da querida amiga Telma. Certa vez, falávamos das notícias de suposta aparição de Et´s. Ela comentou algo que achei tão bonito e me deixou dias reflexiva: “- Amiga, se for verdade, acho que estamos sendo péssimos anfitriões”. Fiquei pensando como a invasão do colonizador polenizou nossa mente, tornando-se ponto de partida para história única, para nossa única narrativa: sempre esperamos invasões, guerras, mentiras, trapaças.
E não,não estou romantizando ou ignorando a agressividade comum a nós, humanos. Tampouco o estranho que há em nós. Mas há algo que me intriga nessa forma de funcionar, em que sempre precisamos ter inimigos, estamos sempre prontos para atacar o que não é espelho ou o que não alimenta minha verdade. Quanto dessas marcas sociais obstruem nossa escuta e afeta nossas compreensões e julgamentos?
Curiosamente, os comentaristas homens que vi, pouco ou quase nada se posicionaram sobre os aspectos que discorro aqui, como se as reflexões de gênero fossem inexistentes ou secundárias. De fato, estudar feminismos nos muda lentes. O filme, a meu ver, nada tem a ver com descobrir se ela matou ou não o marido, tampouco trata-se de um suspense, pois é um drama: um drama que tem anatomia, pois é um drama compartilhado entre nós mulheres. Trata-se de um drama que demonstra um sistema judiciário e social que culpabiliza mulheres pela desmoralização, exploração da sexualidade e julgamento de suas condutas acerca do casamento e maternidade. Um sistema que machuca, destrói, violenta, comete injustiças em nome da defesa de um sistema ideológico gendrado e racializado.
A Anatomia de uma queda é genial justamente por desnudar os processos sociais e não apenas dos tribunais, pois provoca que os/as próprios/as telespectadores reproduzam o inquérito condenatório, afinal as pessoas fazem o mesmo que a promotoria. Por isso, precisamos lutar por atitudes antidiscriminatórias e julgamentos com perspectiva de gênero. É nas fissuras dos sistemas que podemos incidir sobre a cultura e nos proteger de tanta revimitização, as quais são o comum e realidade para nós.
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