Publicado em: 24 de outubro de 2025
Nas últimas duas décadas, observou-se uma notável retomada dos vínculos de pertencimento da sociedade com a gênese histórica da cidade de Belém. Tal fenômeno decorre das profundas transformações empreendidas no seu Centro Histórico, onde edificações remanescentes do período colonial foram cuidadosamente restauradas e ressignificadas, adquirindo novas funções de caráter museológico. Entre as intervenções mais emblemáticas, destaca-se a recuperação do antigo Forte do Castelo — outrora sede do Círculo Militar —, o qual foi minuciosamente restaurado e devolvido à fruição pública sob a denominação de Museu do Forte do Presépio, em 25 de dezembro de 2002. À época, a proposta curatorial e a narrativa expográfica concebidas definiam-se sob o título “O Museu do Forte do Presépio: O Sítio Histórico da Fundação de Belém e o Museu do Encontro”.
A presente reflexão, intitulada “Entre tempos e narrativas: o Museu do Forte do Presépio e a memória da fundação da cidade revisitada”, refere-se justamente à noção de “Museu do Encontro”, materializada no espaço denominado “Sala Guaimiaba”. Nesse ambiente, cristalizou-se uma abordagem histórica acerca do processo de colonização portuguesa na Amazônia, enfatizando o contato — e suas inevitáveis tensões — entre o colonizador europeu e as populações indígenas originárias. Digna de nota era a réplica da tela “A Conquista do Amazonas” (1907), de Antônio Parreiras, cuja obra original integra o acervo do Museu do Estado do Pará. Tal peça desempenhava um papel central na exposição de longa duração, conferindo contornos visuais à narrativa curatorial do “encontro”.
Figura 1: Detalhe da Tela A Conquista do Amazonas


Contudo, ao longo dos últimos vinte e três anos, a recepção crítica do museu evidenciou tensões interpretativas. Muitos visitantes, ao interpretarem e reproduzirem a exposição, contribuíram para a consolidação do que se pode denominar uma “escrita museológica” da História da Amazônia. Assim, não tardaram as contestações: argumentou-se que o episódio ali narrado não se tratou de um encontro, mas, antes, de um confronto — expressão inequívoca dos embates e resistências que moldaram o destino da região. Diante desse cenário e fortemente assentada na ideia de que museus não são somente espaços, mas são também territórios de disputas, a exposição de longa duração começou a ser reformulada e atualizada em suas demandas e narrativas.
A nova curadoria da exposição foi pensada com a substituição da réplica da tela citada e propõe um recorte que se afasta das narrativas hegemônicas centradas na figura dos colonizadores europeus, para dar primazia à resistência dos povos originários que, nesta região, travaram uma luta incessante pela preservação de suas terras, culturas e modos de vida. A documentação iconográfica inserida na exposição no lugar da tela da “Conquista” rememora que este território era densamente habitado muito antes da invasão lusitana. Fato sobejamente comprovado com a própria cultura material indígena encontrada nas escavações arqueológicas e exposta no museu. Portanto, a perda deste território não se deu de forma pacífica ou resignada por parte dos indígenas. Houve enfrentamento, houve resistência, houve dignidade. Neste contexto, o novo conceito expográfico, que sublinha o duplo movimento de encontro e confronto no espaço museológico, estrutura-se em torno de uma narrativa textual e imagética que convida o visitante a revisitar a história sob uma perspectiva decolonial, plural e profundamente humana.
A invasão da Mairi tupinambá e a fundação de Belém
O confronto entre o povo Tupinambá e os invasores europeus que colonizaram e rebatizaram a ancestral Mairi indígena não tardou a eclodir. As terras do Norte, dotadas de exuberante riqueza natural, tornaram-se alvo da cobiça de espanhóis, portugueses, franceses e holandeses desde o século XV, conforme atestam os extensos registros produzidos pela administração colonial ao longo do século XVI. Diversos mapas antigos servem de prova e testemunho da presença vigorosa e belicosa das nações indígenas que habitavam a região, defendendo com bravura o seu território ancestral. Eram, pois, os povos originários os legítimos senhores da terra — herdeiros de uma ocupação milenar —, e a essa posse chamavam Mairi, o território sagrado dos Tupinambá.
Figura 2: Pequeno Mapa do Maranhão e Grão Pará de 1629 – Albenaz

Para a fundação da cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, a expedição comandada por Francisco Caldeira de Castelo Branco partiu de São Luís do Maranhão, singrando a costa no dia 25 de dezembro de 1615. A ocupação do território que hoje demarca o trajeto entre São Luís do Maranhão e o Belém do Pará era então assinalada como o “Caminho do Maranhão para o Grão-Pará”. Tal designação encontra-se registrada no mapa de João Teixeira Albernaz, datado de 1629, no qual a região se destaca sob a denominação de “Província dos Tupinambás”.
Figura 3: Detalhe da Sala Guaimiaba com a nova proposta curatorial

Na Sala Guaimiaba, evoca-se neste momento a memória ancestral, as guerras e as identidades dos antigos senhores dos rios e das terras — povos cuja existência foi silenciada e obscurecida na narrativa oficial da “Feliz Lusitânia”, mas cuja presença ressurge, viva e altiva, na tessitura da história da Amazônia. Por fim, se a “história é filha do seu tempo”, os museus são fenômenos que devem refletir as demandas e narrativas de seu tempo.









Comentários