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A casa de meus pais, durante minha infância e juventude, era frequentada por gente muito interessante. Todos contavam histórias e muitos guardavam um pouco de seu tempo para me ensinar coisas. Mestre Gentil, um dos amigos-irmão de meu pai, um pouco latinista e um pouco arrebatado, entrava em casa, por vezes, como um turbilhão.

Tu, rattus turpis!”, gritava, dedo em riste, dirigindo-se a mim em latim, e depois em inglês,

You, dirty rat!

Fingia um olhar de contrariedade, ignorando todos os demais presentes e concentrava-se na minha pessoa pelos seguintes quinze minutos. Brincava de ser meu mestre, magister meus – mestre de quê, exatamente, nunca soube, mas certamente de algo no caminho da metafísica.

“Fabiofonsecadecastrodagama, verifiquemos o que aprendeste nesta semana!”

(Dizia meu nome como uma palavra só, acrescentando o “da Gama”, dos meus antigos, que considerava um totem necessário).

E começava um diálogo completamente nonsense.

Dicere, vidistine nuper imagines moventes bonas?” 

(Digas, viste algum bom filme?) 

E como eu já conhecia o seu latim – que era feito de frases precisas e pontuais, respondia,

Vidi bonum ipsum, magister meus

(Vi um filme muito bom, mestre) – meu latim permitia apenas essa frase de introdução, e seguia descrevendo-o em português, mas tão logo eu falava mais de 30 segundos sobre o filme, ele berrava,

Alte! Cum sapiente loquens, per paucis utere verbis

 (Alto! Quando falares com um sábio, usa poucas palavras)

Preciosa lição, nunca esquecida.

“Sim mestre”,

“Diga-me então, a ver se estudaste a lição do passadosábado: Quantos ovos põe um lambe-lambe?”

“Dois, apenas”,

“E quantas posturas tem por ano?”

“Duas, uma em junho e outra em dezembro”

“E que aspecto tem seus ovos?”

“São opacos, mas com manchas rubras”

“Muito bem, Fabiofonsecadecastrodagama, muito bem, estás quase pronto para a vida, mas vamos mais a fundo, vamos ao questionário”

“Estou pronto, vamos ao questionário”, eu dizia, muito sério, mas com um riso na alma.

O Gentil fazia semblante de suspense e vinha com perguntas misteriosas, em relação às quais eu tinha a tarefa de interpor um sentido. Ele nos visitava sempre aos sábados, e me punha enigmas desse tipo,

“Pensavas ou apensavas?”,

“Apensava”, respondi, em ter certeza de que era a resposta certa.

“Ah, apensavas?”

“Sim, apensava!”

“És um ogro, és um horrível, meu bom Fábio!” – esculhambou-me, nunca soube por quê.

E prosseguiu, com seus valiosos conselhos: “Suspeito de que pretendes te libertar do romantismo, meu pobre, meu infeliz. Pois saibas que sem o romantismo não serás quem és, não terás identidade, não crescerás na paisagem!”

E seguiam-se outras perguntas misteriosas,

“Dize, meu bom Fábio, o que preferirias: a orgia ou o tchubirubiruba?”

“A orgia, eu creio…” – respondi, não bem certo do que seria a opção do tchubirubiruba.

“Está certa a tua resposta, és um sábio! E dize, se te dou um quinário terás contigo uma moeda de prata, cobre ou bronze?”

“De prata!”, respondi.

“Procede!”, mestre Gentil gritou.

“E em quantas partes a dividirias?”

“Em cinco, por ser um quinário!”

“Procede!”

“E de quantos quinários precisarias se tivesses que me restituir um denário?”

“De dois, posto que cinco mais cinco perfazem dez!”, eu berrava, empolgado.

“Procede!”

Age, Fabius Castrum Gamae, age. Fac te gaudeam. Sit vis vobiscum

(Ide Fabio, ide. Ganha teu dia. Que a força esteja contigo!)

“Sit vis vobiscum, magister meus”,

(Que a força esteja convosco, meu mestre)

Ah, cabe dizer que Star Wars, Guerra nas Estrelas, o filme, havia estreado no ano anterior e que mestre Gentil gostava de converter, para o velho latim, as falas da cultura pop que nos cercava. Cresci misturando mundos. Até hoje os misturo.

Age, Fabius Castrum Gamae, age. Fac te gaudeam. Sit vis vobiscum

“Sit vis vobiscum, magister meus”,

eu respondia e seguia meu caminho, jovem paidawan, enquanto o Gentil, amigo-irmão de meu pai, ia narrar a ele meus progressos no mundo da metafísica.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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