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O que leva parte da população a se identificar com ideias e atitudes nazifascistas?

O Cinema aborda o tema sob a ótica de diversos realizadores e estilos para exorcizar o avanço do obscurantismo e reafirmar a sétima arte como resistência ao atraso, inquietude e reinvenção da gramática cinematográfica.

Em 1934, a cineasta alemã Leni Riefenstahl realizou um registro grandioso do Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg: “O triunfo da vontade”. A propaganda manipula o espectador apresentando Adolf Hitler como mito das multidões hipnotizadas pela grandiosidade, pompa e circunstância que leva militares e jovens a uma espécie de transe, catarse coletiva (qualquer semelhança não é mera coincidência).

Doutrina totalitária elaborada na Itália por Benito Mussolini e associada ao nazismo alemão sob o regime de Adolf Hitler, o nazifascismo rendeu tratados históricos, livros, peças de teatro, filmes e outras formas de expressão artística para o alerta contínuo de que processos históricos podem voltar a qualquer momento, em qualquer país.

O ovo da serpente já estava chocado bem antes da propaganda documental de Riefenstahl, com os petardos fílmicos do Expressionismo Alemão que prenunciavam a chegada de tempos sombrios sob a direção de Robert Wiene (O gabinete do dr. Caligari), F. W. Murnau (Nosferatu, Fausto) e Fritz Lang (“Metrópolis”, “M – O vampiro de Dusseldorf). São filmes que evocam doenças, mortes, alucinações coletivas e individuais.

A imaginação de Charles Chaplin não poupa os matadores coletivos da primeira metade do século XX e faz de “O Grande Ditador” um dos melhores exemplos de como fazer a transição do cinema mudo para o sonoro com um discurso memorável e antibelicista.

Em “Arquitetura da Destruição”, o diretor Peter Cohen expõe didaticamente como foi possível contaminar a sociedade alemã desde cedo com grupos de crianças, jovens e adultos devidamente orientados para legitimar o controle totalitário na destruição de opositores e manifestações culturais não alinhadas ao novo regime (nova ordem).

No berço do fascismo, o movimento neorrealista vai para as ruas com o tom de denúncia em “Roma cidade aberta” (de Roberto Rosselini) e anos depois abre caminhos para o rompimento do movimento nas questões de como chegamos a esse ponto no sensível “Um dia muito especial” (de Ettore Scola). Na obra-prima “O Conformista”, Bernardo Bertolucci explora cenários opulentos que dão a ilusão de pertencimento ao poder fascista na trágica história do mais novo funcionário de Mussolini. Por outo lado, a genialidade de Federico Fellini assusta a plateia na sequência final de “Ensaio de orquestra” na frágil democracia musical que vira desordem. E o conde vermelho Luchino Visconti radiografa os interesses da indústria siderúrgica e nazismo (SA e SS) no longa “Os Deuses Malditos”.

São muitas as produções que abordam adesão e tragédia nazifascista. Para o Novo Cinema Alemão, abordar o tema do nazismo e seu tenebroso esplendor foi a forma de acertar as contas com o passado na realização de grandes obras cinematográficas. “O tambor” (de Wolker Schlondorff) é o grito estridente ao som do tambor de uma criança que se recusa a crescer numa sociedade doente. Werner Herzog vai fundo na apropriação da música de Richard Wagner pelo III Reich no doc “A transformação do mundo em música”. E o cinema pungente de Reiner Werner Fassbinder é impiedoso com o envolvimento de militares e civis em “O casamento de Maria Braun”, “Lili Marlene” e na série “Berlin Alexanderplatz”.

A contribuição francesa pode ser vista em filmes de François Truffaut (Farenheit 451) e Louis Malle (Adeus meninos, Lacombe Lucien). Truffaut adentra num mundo distópico em que livros são queimados e a resistência está na clandestinidade. Os filmes de Malle chamam atenção para o embrutecimento da vítima de violência entre garotos e o papel da igreja no extermínio de judeus.

No Brasil, o exemplo mais contundente talvez seja “Aleluia Gretchen”, de Silvio Back. Com ação no interior do Paraná, o diretor confronta histórias de exílio, tentativa de ideais liberais e o aparecimento do chamado nazismo tropical. Há também filmes fortes que se aproximam do totalitarismo em terras tropicais, como “Memórias do cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos; “O Caso do Irmãos Naves”, de Luiz Sérgio Person; e o recente “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro (o perigo de uma sociedade com base fundamentalista).

Falar de ideais nazifascistas e suas ressonâncias é também falar do sueco Ingmar Bergman em “O ovo da serpente”, do cineasta austríaco Michael Haneke (A fita branca), Pier Paolo Pasolini (Salò ou os 120 dias de Sodoma), Tony Kaye (A outra história americana) e Dennis Gansel (A onda).

O legado cinematográfico para a compreensão e desmascaramento da ideologia nazifascista está inserido na História da Humanidade, mesmo com tentativas de apagamento de fatos comprovados e descasos que podem provocar incêndios criminosos em cinematecas, produtoras independentes e ameaças de toda natureza.

Hoje, vivemos um pesadelo distópico nunca visto, com negacionismo assassino, abusos de autoridade, queimadas e mortes que só se acumulam. Parte expressiva da sociedade parece estar sob efeito de um sonambulismo letal e a responsabilidade ainda impune. Porém, já se ouvem vozes cada vez maiores de repúdio e cobrança de uma sociedade democrática plena e com direito à vida.

Cena de “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin. Foto: Dilvulgação
José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

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