O Gabo tinha medo de autorizar a adaptação de sua obra prima Cem Anos de Solidão, vencedora do Nobel de Literatura, para outra linguagem diferente do texto literário. Ele preservava e não negociava o principal valor de seu trabalho: a latinoamericanidade. Este aspecto envolvia alguns elementos importantes: o ambiente da obra, a língua, a complexidade da narrativa, o cenário e a magia da sua Macondo.
Depois que o velho Gabo se foi para a outra margem do infinito, em 2014, a família herdou o legado da obra do gênio de Aracataca, na Colômbia. A responsabilidade não era pequena, sobretudo pelas críticas negativas à adaptação de O Amor nos Tempos do Cólera, outra obra do autor, para o cinema.
Cem Anos jamais caberia em um filme. A complexidade da obra, a genealogia completa das sete gerações dos Buendia, a riqueza de filigranas nas proezas e peripécias das personagens, a fundação da Macondo, as tramas intricadas e o universo insólito do realismo mágico da ficção jamais caberiam em algumas horas de filme, dizia o Gabo. A família do Gabo deveria segurar esse compromisso com a memória dele: preservar a integridade e a magia da obra.
Após negociações com a família do Gabo, legatária dos direitos autorais, a obra foi adaptada para o formato série, no streaming, a estrear em 2024, na Netflix. Muitos fãs da obra estavam céticos quanto ao resultado. Eu, por exemplo, não acreditava que a produção desse conta de reproduzir a magia da Macondo de Gabo, nem de traduzir nossa latinoamericanidade para a linguagem audiovisual. Fui conferir!
Alguns elementos importantes contribuíram para o consentimento da família de Gabo para a adaptação de Cem Anos:
- Por exigência dos herdeiros de Gabriel García Márquez, a série foi toda filmada na Colômbia, onde ele nasceu e onde a trama se desenvolve. As filmagens ocorreram nas imediações de Bogotá, onde foi construída uma reprodução real da onírica Macondo.
- O elenco é integrado por atores colombianos. Alguns, inclusive, atores iniciantes, o que promoveu a verossimilhança do aspecto e fenótipo latinoamericano das personagens. Grande lance!
- A língua espanhola é a pedra de toque da adaptação. O Gabo tinha particular receio de que a sua obra fosse pasteurizada, artificializara e desvirtuada para o inglês americano, perdendo a essência da nação originária, na qual a língua não é apenas o modo de falar, mas o estilo de vida das personagens. Bingo!
- O formato série, em 16 episódios, divididos em duas temporadas, deu conta da parcimônia necessária para o desenvolvimento da trama, para o desenovelamento da árvore genealógica dos Buendia.
Minhas impressões:
Da minha perspectiva de leitora da obra e de espectadora da série, Cem Anos é uma narrativa matriarcal e matrilinear, cuja figuração se desdobra em torno da vida centenária de uma mulher forte, intuitiva, poderosa e empreendedora: Úrsula Iguarán, matriarca poderosa dos Buendia. Úrsula, potente e presente em todos os ambientes da trama, não coube no papel de coadjuvante de nenhum homem da trama. Foi duro entregar a personagem do Gabo, que ele mesmo não queria ver em carne e osso, mas a série nos traz uma Úrsula crível.
Contém spoiler, para quem não leu o livro.
Úrsula é o DNA mitocondrial que, junto ao primo, José Arcádio Buendia, erige a família Buendia, é um esteio forte na cosmogonia de Gabo; é a pessoa eminente da Macondo, que sofre com resiliência enquanto o patriarca, José Arcádio, padece de loucura, amarrado a uma castanheira. É a mulher para quem as vestes do luto são o dress code, a partir da perda dos seus três descendentes próximos e tantos outos parentes e aderentes na trama.
A Úrsula do romance é a mulher que, após casar com o próprio primo, se aventura quixotescamente com o marido e com um pequeno séquito mata adentro em busca do mar… Úrsula foge de um fantasma e do próprio destino, profetizado por sua mãe. Porém, como na tragédia grega, o herói não pode fugir ao seu destino. Essa mulher é pungente e insólita, como a América Latina, onde o insólito e a magia são cotidianos, para citar Carpentier. Na série da Netflix, o episódio da diáspora é gravado em mata amazônica fechada. É lindo!
Para minha lupa de fundo de garrafa, leitora atenta, Cem Anos, embora os eventos mais dramáticos, como os desdobramentos da mente visionária de José Arcádio e do cigano Melquíades, ambos, estudiosos da alquimia e da nova ciência, do finissecular XIX e início do século XX; a verve política do coronel Aureliano Buendia e o bonapartismo do neto de Úrsula, vejo que ela mesma é a grande heroína; é a alma-mater de Macondo e dos Buendia, cuja ascensão e declínio coincidem com a linha de tempo dessa personagem.
Afinal, somos leitores. Leitores são muito conservadores e ciumentos quanto à integridade de suas personagens favoritas, de de suas narrativas queridas. A obra e a série provocam emoções e efeitos estéticos próprios de cada veículo de emoções. Cem Anos de papel e tinta é um deleite para ser absorvido brincando com a língua e com as imagens da pena de Gabo, imaginando mundos, rostos, cenas e cores únicos.
A cidade chovendo flores amarelas é um rio de emoções que inunda Macondo, onde tudo é possível, inclusive uma espécie de dança húngara, que foi capaz de provocar insônia na cidade toda, salva por alguma poção mágica do cigano Melquíades, o alquimista que encantou José Arcádio, alienado ao proclamar, segurando uma laranja, após estudar com um astrolábio a posição das estrelas: a Terra é redonda! Feitiço da maçã que instruiu Isaac Newton? Sofri muito com a alienação de José Arcádio! Como gostaria de ter conversado com ele sobre suas teorias científicas ao pé daquela árvore… Eu o teria desatado e atado ali todos os que o estigmatizavam.
Cem anos da Netflix é outro veículo de emoções. A segunda temporada já está sendo gravada. Para quem não leu o romance, é uma oportunidade para grandes surpresas com esse presente da mente brilhante de Gabriel Garcia Marquez.
Outro dia falarei sobre Pedro Páramo, inspirado no romance homônimo do ficcionista mexicano Juan Rulfo, que também está na Netflix. Dizem na aldeia literária que Gabo se inspirou nessa obra para criar a Macondo. Vale a pena conferir.
Referências:
Carpentier, Alejo:
https://a.co/d/3TKE1fn
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