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Encontrei dia desses, numa crônica maravilhosa do Júlian Fuks (Prêmios Jabuti 2016 e Saramago 2017), a definição mais precisa do que é a casa onde moramos, ou, melhor dizendo, do que deveria ser. Escreveu o renomado autor paulistano, filho de pais argentinos, que: “A casa não é a disposição de seus cômodos ocos, não é o vão entre móveis baratos, não é feita de seus vazios, de seu impalpável nada. Nunca invejei tão pouco os desapegados de tralhas, com suas casas impecáveis, perfeitas, em que cada objeto tem sua função presente e exata. A casa é justamente tudo o que sobra, museu de inutilidades, soma de todas as coisas ínfimas que os dias trazem, e que, prometemos a nós mesmos, em alguma tarde haveremos de limpar. Quando esta tarde enfim chega, viveremos a falsa e passageira paz que emana da ordem, mas fatalmente teremos menos passado, teremos menos casa.”

Achei tão bonito, tão fiel ao melhor conceito de lar, quase um acalanto, e só não tive vontade de morar na casa descrita porque tive a benção e o privilégio de sempre morar em casas assim, que embora espelhassem as personalidades e almas de seus habitantes, tinham também suas próprias individualidades, definiam-se de modo autônomo, original, como se tivessem vontades próprias, como se efetivamente fossem parte da família, cada qual em seu tempo particular.

Nas boas lembranças da infância está sempre a casa da Travessa Dom Romualdo de Seixas, onde nasci e onde também moravam meus avós paternos, alguns tios e primos e pessoas que para sempre morarão comigo, em mim, ainda que já tenham partido, como é o caso da Vó Rosa, um daqueles seres humanos extraordinários que Deus brinca de botar na Terra só para provar que anjos existem e vivem entre nós. Sempre está também a casa do Mosqueiro, cenário lúdico de momentos que, hoje compreendo, foram formadores do que sou e me tornei.

Há, ainda, a casa da Rua dos Mundurucus, para onde mudamos quando eu tinha 7 ou 8 anos, se não me trai a memória, de onde saí aos 25 para morar sozinho num apartamento no bairro do Marco. Esta casa foi e jamais deixará de ser a casa dos meus pais, nela entrei criança, dela saí adulto. Já não existe mais, foi vendida e derrubada, mas para mim continua lá, no mesmo lugar, com cada palmo dos seus jardins, cada fruta do seu quintal, cada janela, cada quarto, com o ecoar do piano que minha mãe tocava, com o ruído das tantas ferramentas e máquinas que meu pai usava para exercer sua miríade de talentos e dons.

Sempre as casas a possuir e situar o passado, sempre as casas a abrigar o tempo e aconchegar as saudades. Impossível dissociá-las de tudo quanto guardo e acumulo de mim ao longo dos meus 52 anos. Se lembro dos meus pais conversando em cadeiras de embalo, de pronto os visualizo no pátio da casa de Mosqueiro; se recordo traquinagens infantis e animadas festas de família, imediatamente me vêm à mente imagens do grande salão da casa do Umarizal, com seu piso de tacos e suas portas de madeira e vidro, uma das quais varei correndo numa estripulia que me rendeu alguns cortes no braço; se revivo inesquecíveis banhos de chuva e de biqueira, logo me transporto para o jardim de inverno da casa da Mundurucus, repleto das plantas que durante anos vi minha mãe regar com indisfarçado carinho.

Lembranças, portanto, não são meras imagens escondidas do esquecimento. Elas normalmente tem endereço certo, lugar de origem, e as mais doces normalmente têm por palco as casas em que vivemos, as nossas e as de quem amamos. Basta ver, prova irrefutável, a verdadeira instituição a que a humanidade dá o nome de casa da vovó.

No tempo presente, a casa é o melhor retrato do que somos, de como encaramos a vida e do que pretendemos dela levar, se é que algo se possa levar daqui para algum lugar. Pessoalmente, adorava ver espalhados pela casa os brinquedos dos meus filhos quando eram crianças pequenas. Hoje, já crescidos, vejo mochilas, cadernos, apostilas escolares, ocasionalmente roupas sujas, basqueteiras, bolas de basquete, jalecos e estetoscópios.

Minha esposa costuma reclamar das camisas penduradas nas cadeiras da sala de estar, ou da bagunça dos livros que dormitam pelos cômodos. Alguns na varanda, vários sobre a mesa, outros pelo quarto. Muitos já li, em outros passei a vista. Uns são para ler aos poucos, eis que de poesia ou crônicas. Alguns talvez nem leia, mas me apraz imenso que estejam ali, guardando beleza e paz tão ao alcance das mãos. De páginas fechadas, resistem à feiura que há no mundo, não permitem que lhes invadam a insensatez, a estultice e a sordidez dos homens maus. De páginas abertas são ainda mais resistentes e revolucionários, e partem conosco da casa aos mais longínquos recantos da imaginação.

Nesse aspecto, aliás, me identifiquei bastante com outra cativante crônica do Fuks, não por acaso denominada Sobre a beleza, etc., que tal como aquela que mencionei no início – Elogio da casa, está inserida num livro delicioso chamado Lembremos do futuro. Crônicas do tempo da morte do tempo, coletânea de 30 textos escritos durante os períodos de isolamento severo da pandemia, entre 2020 e 2021 (Ed. Companhia das Letras): “Mantenho ao lado da minha cama uma pilha de pequenas belezas, tão banais quanto íntimas, para acessar em momentos de insensata paz ou de sutil desespero. São livros que me habitam há um tempo incerto, transitórios e perenes, livros que têm o estranho poder de me afastar do mais contingente dos eus e assim me devolver a mim mesmo. Com eles atravesso a mim e ao mundo, atravesso a turbulência agressiva das notícias, a algazarra de tantos analistas, peritos, especialistas, todos munidos de suas razões e certezas. Com eles me abrigo na dúvida, tantas vezes saturada de lucidez.”         

Faz-me bem que a casa esteja viva, que nela more um cão, que não seja milimetricamente arrumada como a vitrine de uma loja de móveis. A vida não é assim, não é milimetricamente arrumada como a vitrine de uma loja de móveis. Muito ao contrário, tal como a casa que aprecio, a vida é um conjunto de espalhamentos, uma desarrumação contínua que tentamos adestrar da melhor maneira. Quando olhamos para trás e o que vemos nos encoraja a olhar para a frente, percebemos que há poesia a justificar tudo, inclusive a vontade de voltar ao fim de cada dia para a casa feliz da qual saímos de manhã.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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