0

Quatro denunciantes do Coletivo de Vítimas do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra irão a tribunal, no próximo dia 15 de novembro, processadas pelo seu agressor, o professor e sociólogo Boaventura de Sousa Santos, de enorme renome internacional e fundador do CES.

O Coletivo de Vítimas do CES surgiu em abril de 2023 com a publicação de um capítulo que provocou repercussão internacional. Intitulado “The Walls Spoke When No One Else Would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” (“As Paredes Falaram Quando Ninguém Mais Ousou: Notas autoetnográficas sobre o controle do poder sexual na academia de vanguarda”), o texto foi escrito por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadia Tom e integra o livro “Sexual Misconduct in Academia”, organizado por Erin Pritchard e Delyth Edwards (Routledge, 2023).O capítulo abordava um padrão estrutural de assédio moral e sexual no CES, mencionando a existência de uma cultura de abuso de poder e exploração intelectual, e relembrava as pichações que, há alguns anos, clamavam “Fora Boaventura. Todas sabemos!” nas paredes da Universidade de Coimbra. Embora o texto não mencionasse nomes diretamente, Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins se identificaram como as figuras de “Professor Estrela” e “Aprendiz” mencionadas na narrativa, respectivamente.

A repercussão do capítulo não foi limitada aos círculos acadêmicos: a editora retirou a publicação temporariamente devido ao impacto das denúncias, mas o texto continuou a circular e a instigar discussões sobre a falta de enfrentamento institucional ao assédio. Boaventura solicitou autossuspensão como investigador do CES, enquanto Sena Martins, que permanece suspenso até hoje, segue recebendo seu salário. Embora Maria Paula Meneses, outra pesquisadora do CES, nunca tenha confirmado ser a “Sentinela” mencionada no capítulo, ela foi associada a essa figura em uma matéria do jornal português Diário de Notícias, publicada em 15 de abril de 2023.

Em sua resposta inicial, Boaventura negou as acusações, descrevendo as autoras em termos depreciativos, o que foi interpretado como um reflexo das próprias práticas de silenciamento que o capítulo denuncia. As acusações abriram uma discussão pública sobre o padrão de comportamento na academia e o papel de figuras de poder que, durante décadas, se beneficiaram de uma “rede de sussurros” para manter práticas abusivas ocultas. Apesar da resistência de Boaventura e de alguns membros da instituição, o coletivo de vítimas tem utilizado as denúncias para pressionar o CES a promover mudanças internas e estabelecer novos procedimentos para lidar com o assédio sexual e moral na academia.

A comissão independente que investigou denúncias de assédio moral, sexual e abuso de poder no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra concluiu que ocorreram “padrões de conduta” abusivos por parte de pessoas em posições hierárquicas elevadas na instituição. O relatório, que possui 114 páginas, foi divulgado em março de 2024, sem mencionar diretamente os nomes dos envolvidos, incluindo Boaventura e Sena Martins.

O relatório descreve episódios de toques e avanços sexuais não consentidos, envolvendo beijos e abraços indesejados e prolongados, bem como tentativas de estabelecer relações íntimas com alunas em posição de vulnerabilidade. Em certos casos, esses avanços ocorreram sob o efeito de substâncias como álcool, o que teria comprometido o consentimento livre. O documento também revela outras formas de assédio, como propostas implícitas de ganhos acadêmicos em troca de relações íntimas, além de controle sobre aspectos pessoais das vítimas, com comentários invasivos sobre a vida privada e insistência no consumo de álcool com intenções sexuais. Várias das vítimas são mulheres brasileiras.

Além dos abusos sexuais, as práticas relatadas incluem agressões morais e uso abusivo de recursos institucionais para fins pessoais, além de exigências excessivas que desrespeitavam a vida pessoal e horários de descanso de alunos e pesquisadores. As denúncias foram categorizadas em três tipos de envolvimento: aqueles diretamente responsáveis pelos abusos, cúmplices que ajudaram a acobertar as práticas e os que negligenciaram os acontecimentos, mantendo-se em posição neutra. A comissão recebeu trinta e duas denúncias feitas por diferentes vítimas, que identificaram catorze pessoas como responsáveis ou cúmplices.

Boaventura, em resposta, inicialmente negou veementemente as acusações e chegou a descrever as denúncias como um “ataque” ao CES e aos membros fundadores da instituição, atribuindo a mobilização a interesses de grupos feministas. Entretanto, em julho, Boaventura publicou um pedido de desculpas público, admitindo que poderia ter tido “comportamentos inapropriados” que, no passado, não eram percebidos como problemáticos, mas negou envolvimento em qualquer “ato grave”.

Ainda assim, Boaventura ajuizou, em outubro de 2024, uma ação de tutela de personalidade contra quatro das mulheres que fazem parte do coletivo que o acusou de assédio moral, sexual e abuso de poder no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. As pesquisadoras Sara Araújo, Carla Paiva, Teresa Cunha e Gabriela Rocha, que são alvos do processo, já haviam se manifestado publicamente, junto a outras mulheres, denunciando condutas abusivas do professor. No entanto, Boaventura argumenta que as acusações geraram um “golpe mortal” em sua reputação, responsabilizando diretamente as denunciantes e sugerindo que elas estão sendo manipuladas por terceiros, uma insinuação que pode ser considerada, inclusive, sexista.

No processo, Boaventura exige que as pesquisadoras não apenas desmintam as acusações, mas também expressem publicamente “respeito e reconhecimento” por ele. Esse tipo de ação legal, conhecido como lawfare de gênero, é descrito por ativistas e advogados de direitos humanos como uma tentativa de intimidação que visa desencorajar futuras denúncias. O coletivo de mulheres denuncia que essa estratégia legal é usada para isolar e silenciar denunciantes, selecionando um pequeno grupo para servir de exemplo, apesar das denúncias serem assinadas por mais de dez mulheres. Em carta aberta e entrevista, o grupo relatou experiências de assédio que, segundo elas, incluem assédio sexual e controle abusivo sobre seus trabalhos e carreiras acadêmicas.

A audiência do julgamento está marcada para 15 de novembro de 2024, às 14h, no Juízo Central Cível de Coimbra. Segundo o coletivo de vítimas, a ação do professor Boaventura tem como objetivo limpar sua imagem e neutralizar as vozes das mulheres que o acusaram, pressionando-as a recuar em suas denúncias. Para angariar suporte para este caso e também para outras vítimas de assédio acadêmico, foi criado o site e o Instagram Academia Sem Assédio, onde as histórias, os objetivos das ações e as cartas abertas podem ser acessadas, além das campanhas de financiamento em apoio aos processos jurídicos das vítimas.

Screenshot
Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

Cartas de amor

Anterior

“Caminhos para Belém – o amor que flui como água”, de Alexandre Baena, no MAS-SP

Próximo

Você pode gostar

Mais de Notícias

Comentários