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Se há na filosofia uma polêmica antiga, pisada e repisada milhares de vezes, quiçá milhões, é a que discute se o homem é naturalmente bom ou naturalmente mau; se nasce virtuoso e altruísta, pacato e ordeiro, pronto para viver em sociedade e respeitar seu semelhante, como afirmou Rosseau; ou se nasce beligerante e predador, egoísta e dissimulado, disposto a se sobrepor sobre seus iguais a qualquer custo, inclusive pelo uso da força, como defendeu Hobbes.

Rosseau entendia que o homem é originariamente vocacionado para o bem, mas a sociedade o corrompe, a civilização o deforma, teoria que abordou com grande repercussão em obras como Discurso sobre as ciências e a arte, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social. Hobbes, por seu turno, via no homem seu próprio algoz, um ser dotado de capacidade destrutiva ínsita, inata, que só pode ser contida pela ação coercitiva de uma autoridade superior, apta a domesticá-lo, como explicado no seu Leviatã. É dele a célebre frase “o homem é o lobo do homem”, animal que não sobrevive sem abdicar de parte da sua liberdade para render-se aos ditames de um governo central que assegure a paz e a harmonia social.

Aqui entre nós, é filosofia demais para uma singela crônica dominical, um texto que pretendia apenas fazer parte de um domingo comum, preguiçoso e relaxante, daqueles que a gente passa alternando entre a rede, a cadeira de embalo e as pequenas incursões à estante de livros e à geladeira, com os demais itens essenciais – o aparelho de som bluetooth e o ar condicionado – acessíveis por controle remoto.

Mas, enfim, “filosofia é poesia, já dizia minha vó” (viva Erasmo!) e sem poesia não há domingo que se preze, o que nos força então a vencer o ócio e a botar os neurônios para funcionar, ativando as sinapses ao menos para gastar energia como propôs Cecília Meireles em seu belíssimo Exercício, escrito em 1955:

“Ciência, amor, sabedoria,

tudo jaz muito longe, sempre

– imensamente fora do nosso alcance.

Desmancha-se o átomo,

domina-se a lágrima,

já se podem vencer os abismos

– cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,

e é-se um pequeno segredo

sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,

embora de uma nobre tristeza,

nós, os que o sol e a lua

todos os dias encontram

no espelho refletidos,

neste longo exercício de alma.”

Se penso nos meus pais, nos meus avós e em alguns tios, primos e amigos, dou razão para Rosseuau, mas aí me lembro de alguns parentes e conhecidos que parecem ter inspirado Hobbes e perco a inocência. Se tenho em mente Madre Teresa, Zilda Arns, Bruno Sechi, Júlio Lancellotti, Afonso Haus e diversos outros benfeitores, me decido por apoiar Rosseau, mas aí o capeta me sopra nos ouvidos alguns nomes controversos e perco a coragem de criticar Hobbes.

Se temos o exemplo de Albert Sabin, que renunciou a patente da sua vacina em favor da humanidade, consagrando Rosseau; temos de igual modo o legado de Julius Robert Oppenheimer, o criador da bomba atômica, nome de peso na equipe de Hobbes. Se há professores primários que caminham léguas nos rincões do Brasil para ensinar crianças e adultos a ler e escrever, mesmo ganhando salários miseráveis, há políticos miseráveis que preferem manter o povo na ignorância, de preferência a muitas léguas de distância.

Se há gênios da literatura a escrever tesouros como Grande Sertão Veredas, Memorial do Convento, Dom Quixote e David Copperfield, há charlatões a assinar panfletos que sequer justificam o gasto de papel e tinta. Se há músicos, letristas e compositores a criar joias como as Bachianas Brasileiras, Pedacinho do Céu, Carinhoso e As rosas não falam, há embusteiros a gritar que as meninas estão ficando atoladinhas e que devem baixar a bunda até o chão.

Sempre Rosseau e Hobbes, sempre a eterna luta da virtude contra o vício, da verdade contra a mentira, do Deus de bondade contra o príncipe dos abismos. É uma disputa ancestral, milenar e que aparenta ser eterna. “Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem”, está escrito em Romanos 12, 21.

De minha parte, obediente ao lema de que “enquanto houver gelo há esperança”, e acreditando que nossa fé deve ser alegre, tenho envidado esforços hercúleos para dar espaço ao otimismo, valorizando testemunhos inquestionáveis de benevolência e bem-fadar. Eles existem e ainda são muitos. Gente que se dedica a serviços sociais e assistenciais, gente que se dedica a instituições de caridade, ao trabalho voluntário em estabelecimentos hospitalares e prisionais, que batalha pela vida de sol a sol, honestamente, orientando seus filhos a não trilhar o caminho pantanoso do engano.

O problema é que no Brasil de hoje a austeridade não compensa tanto quanto o crime, e o que se vê diariamente, nas escandalosas manchetes da grande imprensa, torna reais e concretas as tristes impressões de Camões: “Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e para mais me espantar, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos.”

Por fim, pra piorar de vez o placar e comprovar que a maior esperteza do diabo é nos fazer crer que ele não existe, ainda há quem prenda passarinhos em gaiolas, crueldade odiosa e abjeta que faz Hobbes vencer Rosseau por nocaute.

Some rolinha, anda andorinha, te esconde bem-te-vi… bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí…

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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