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Há alguns dias o jornalista William Waack, já com um histórico de declarações racistas que lhe custaram o emprego na Rede Globo, vomitou xenofobia e arrogância ao anunciar, na CNN, que Belém seria “no meio do mato”. Nós, parauaras e amazônidas, nos revoltamos com mais uma das milhões de demonstrações do preconceito secularmente a nós dirigido pelos povos sudestinos e sulistas, originado e fomentado por este colonialismo interno que nunca se acaba. Sim, Belém é no meio do mato. O mato mais rico deste nosso planeta, com a maior biodiversidade e exuberância, com uma sabedoria milenar muito mais profunda do que as das ditas civilizações europeias que nos violentaram e dizimaram e que talvez seja a maior aposta na salvação deste nosso mundo. Sim, Belém – que deveria ser Mairi – é no meio do mato, e não poderia pensar em maior sorte do que esta.

Vi muita gente do meu mato indignar-se com a fala de Waack e meter a boca no trombone das redes sociais, a nossa pracinha cosmopolita onde podemos expressar o que quer que seja. Beleza, acho que tem de ser mesmo assim. O que me causa estranhamento é alguns destes – homens, que fique bem claro – usarem este mesmo espaço para fazer piadinhas relacionadas ao filme da Barbie, aquelas do tipo que, um homem, só vai assistir se for obrigado por uma companheira mulher. Se for feminino, é “bobo”, como pregam as milenares construções sociais do patriarcado que criaram estereótipos femininos que confundem, separam, objetificam as mulheres assim nos impedindo de nos unirmos propriamente e mostrarmos quem é que carrega o mundo. Sim, meus senhores, vocês podem até ocupar os poucos lugares na mesinha ao topo da pirâmide, mas quem sustenta a base somos nós, e isto não sou eu quem digo não. Qualquer pesquisa mostra que somos maioria não só em números, mas como chefes de família e alavancas sociais, e ainda assim todo livro, filme, música que trata de relacionamentos interpessoais de forma rasa é feito e considerado para o público feminino, como se não tivéssemos a capacidade intelectual para assuntos técnicos ou complexo, mesmo que o último censo do IBGE tenha mostrado que somos maioria no ensino superior brasileiro (por sinal, o site do IBGE Educa é uma ferramenta fantástica para professores, jovens, crianças e todos os cidadãos que quiserem saber resultados do último censo de forma fácil e descomplicada).

Só que Barbie não é um filme raso, mesmo que por séculos o visual (incrível, por sinal) cor-de-rosa tenha sido associado a uma falta de intelectualidade e profundidade filosófica atribuída ao sexo feminino. Aliás, o desenrolar de toda a reflexão começa com qual perspectiva é adotada para observar a mera existência da boneca: um estereótipo de beleza e perfeição opressor ou uma libertadora de barreiras que mostra as infinitas possibilidades da vida de uma mulher, já que a Barbie é a representação de que uma mulher pode ser exatamente tudo, de artista a astronauta, de ganhadora do prêmio Nobel a atleta. Ops, spoiler. Enfim, assim como muitas obras e do direcionamento proposital a um público de blockbusters, a alegada falta de profundidade de Barbie está nos olhos de quem assiste – ou de quem nem assiste por ter se deixado levar por pré-conceitos bobos, como é o caso da Laura Horvath, vencedora de 2023 do Crossfit Games. A atleta húngara é a primeira a ocupar o lugar mais alto do podium depois da hegemonia de 6 anos da australiana Tia-Clair Toomey – a maior vencedora da história do campeonato (de ambos os sexos), que não participou este ano por ter dado a luz à sua primeira filha – e, em seu discurso de vitória, no qual fez questão de acentuar que se sentia honrada em ser um exemplo para mulheres e jovens mulheres atletas ao demonstrar que a aparência física não determina o potencial atlético e o nível de excelência do corpo no esporte, cometeu um único deslize: de dizer que não iria ver o filme da Barbie. Mal ela sabe o quanto uma mulher como ela, autodeclarada fora dos padrões estéticos convencionais, iria se identificar. Eu, que sou fã, espero que mude de opinião.

No mesmo dia da Barbie estreou Oppenheimer, sobre o físico estadunidense que coordenou o projeto Manhattan, responsável pela bomba atômica. É claro que este era um título muito mais palatável para qualquer um que quisesse pagar de, no mínimo, mais inteligente, e talvez por simples e puro ranço eu o coloquei em segundo da lista, apesar de minha nerdice assumida e adorar história – principalmente relacionada a cientistas. Mas foi só para marcar um ponto que ninguém está interessado além de mim mesma, porque afinal das contas eu nem saberia apontar qual filme eu gostei mais. Fico muito feliz pela grandiosidade da obra cinematográfica depois da série Manhattan – sobre o mesmo projeto, porém com menos Oppenheimer – ter sido cancelada ainda na segunda temporada. Fico também feliz em ver um filme como este mostrar que um cientista da capacidade intelectual de Oppenheimer ajudou a criar coisas tão horrendas como armas nucleares e que, quando foi perseguido pelo governo e pela opinião pública, não foi por causa das bombas atômicas que trucidaram o povo japonês e sim por seu envolvimento com os ideais e partidos comunistas (não vou me desculpar por um spoiler de um filme baseado em fatos reais, sorry). Qualquer semelhança com a (infelizmente, ainda) realidade do Brasil não é mera bizarrice.

A fala xenófoba de Waack não vai ser a última dirigida à Amazônia e seu povo por um brasileiro. Somos muitos Brasis, sem qualquer vislumbre de ser possível nos sentirmos como um só. Também, ainda que muito avancemos na saída da condição de, como descreveu Beauvoir, “o outro” na sociedade, parece que ainda estamos muito distantes de, como mulheres, não sermos pré-julgadas como rasas, às vezes até mesmo por mulheres incríveis que quebram paradigmas; e a ciência, apesar do aprimoramento das nossas capacidades intelectuais como humanidade, ainda continua a receber os recursos necessários quase que apenas quando se volta a interesses escusos que têm como finalidade os bolsos de poucos – mesmo que a custa da morte de muitos. A realidade de spoiler não tem nada: é a crônica de uma morte anunciada.

(Crédito da imagem: hdqwalls)

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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