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O processo político-social brasileiro dos últimos anos, com o golpe de 2016 e as eleições presidenciais de 2018 e 2022, certamente vai render muitos capítulos interessantes nos livros de História – e provavelmente muitos roteiros de obras audiovisuais que, para quem for alheio aos acontecimentos reais, parecerão trabalhos de ficção escrita por autores extremamente criativos ou sob o efeito de psicotrópicos. Como expatriada, praticamente todos os dias dos últimos seis anos me vejo numa situação em que sou indagada sobre a conduta de uma parcela da população – principalmente sobre o fato de pessoas pedirem intervenção militar para cercear a sua própria liberdade – e não sei nem como começar a responder. Na minha opinião isto e tantas outras coisas são incompreensíveis, por mais que eu tente me colocar no lugar do próximo. Não faz sentido algum. Não tenho nem pretensão de um dia conseguir ter resposta a uma pergunta dessas.

Entretanto, existe um questionamento que, acredito, merece grande discussão e que ajuda no entendimento de todo o processo: a “separação” das regiões. Não é novidade que o Brasil é um país enorme, de dimensões continentais, de ocupação plural e, consequentemente, um dos mais – se não o mais – diversos do mundo em todos os sentidos, e que isto já é argumento suficiente para tanta divergência, porém o claro posicionamento eleitoral antagônico das regiões Norte e Nordeste em face às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul é o reflexo de um fato que, até hoje, ainda é muito pouco discutido para a sua relevância social, político e econômica na sociedade brasileira: o colonialismo interno.

No Brasil temos uma produção intelectual importante sobre as heranças coloniais que até hoje definem nossas principais mazelas sociais e nomes como Lélia Gonzales e Djamila Ribeiro são referências basicamente unânimes para quem tem interesse em entender o reflexo do colonialismo no Brasil, principalmente em relação ao lugar imposto às mulheres negras e miscigenadas (que, se tivermos um olhar lógico, são todas, mas não vou entrar neste mérito aqui), mas a discussão de como algumas regiões são subjugadas, exploradas por outras, é extremamente ineficiente, atingindo muito pouco a população em geral e sendo insuficiente no meio acadêmico.

Há uma cena clássica em Bacurau, premiado filme de Kléber Mendonça Filho, em que o casal paranaense, em diálogo com os estadunidenses, afirma que são diferentes dos nordestinos, que são “mais como eles”, que são da região Sul, descendentes de europeus. Não surpreendentemente esta cena virou um meme nas redes sociais: quem é brasileiro sabe que este pensamento absurdo é extremamente verdadeiro e enraizado no senso comum nacional. Crescemos com a ideia generalista de que o Sul é branco e o Norte é pardo (que eu prefiro chamar de colorido), porém quem tem dois dedos de juízo na testa ou a oportunidade de vivenciar o mundo fora do nosso país sabe que o brasileiro branco, num contexto global, é um mito – no real sentido da palavra e não na adjetivação bizarra que parte da população usa para se referir ao seu “líder supremo”. O racismo é um problema tão profundo e difícil porque ele não tem lógica alguma numa sociedade que é completamente miscigenada, salvo por poucas comunidades originárias que conseguiram, até hoje, manter-se isoladas e preservadas.

É muito comum escutarmos a justificativa (como se fosse aceitável) para o comportamento preconceituoso dos “brancos” brasileiros na grande quantidade de imigrantes europeus que ocuparam aquelas regiões – principalmente o Sul – depois da abolição da escravatura, em 1888. Parece que as pessoas que cultivam esses sentimentos supremacistas se esquecem que seus antepassados – na maioria dos casos – só vieram ao Brasil porque literalmente passavam fome, que chegaram aqui para substituir a mão de obra negra que não podia mais ser escravizada legalmente. Num sistema muito parecido com o que observamos hoje no sentido contrário e que denominamos de tráfico humano, foram submetidos a uma situação de servidão análoga à escravidão, explorados pelas oligarquias que até hoje oprimem a grande maioria do povo.

A branquitude de seus corpos (e as leis recém promulgadas) os salvou dos aspectos mais violentos da escravatura, mas ainda assim, nem de longe, essas pessoas poderiam ser entendidas como algum tipo de “elite” no contexto daquela altura. E, vejam bem, tudo isto que eu escrevi agora não é nenhum conhecimento de causa mais aprofundado, são apenas as vozes da minha cabeça (calma, isto significa que são lembranças das minhas aulas de história lá da quinta ou sexta série e não alguma corrente no WhatsApp, por onde infelizmente tanta gente se desinforma) misturadas com o conhecimento da história das minhas próprias famílias, de mãe e de pai, também formadas em significante parte por imigrantes italianos que perceberam a cilada que era ir ao Sudeste ou Sul do país e resolveram seguir a super dica de um conterrâneo e assim acabaram na Amazônia, um lugar onde conseguiriam facilmente terras. Mas isto é uma outra história. O resumo da ópera é que, quem veio, de Norte a Sul, não foi para desfrutar de nossas espetaculares e exóticas paisagens. O povo trabalhador do Brasil de hoje foi construído basicamente a partir dos povos originários invadidos, dos africanos escravizados, e dos europeus que lutavam contra a fome.

Estes fatos históricos, ainda que apresentados aqui de uma forma simplista e generalizada, deveriam colocar no (in)consciente coletivo o sentimento de que estamos no mesmo barco. Sabemos que não é o que aconteceu. A cicatriz da escravidão é tão profunda que a cor da pele ainda é o primeiro fator na escala de opressão e violência, entretanto a discriminação por causa da origem geográfica é um problema de grande importância no Brasil. A ida da corte real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 determinou uma polarização político-econômica, polarização esta consolidada na República do Café com Leite e que segue até hoje. Acabamos de eleger um nordestino pela terceira vez para o cargo de presidente da república, depois da redemocratização do Brasil, mas não podemos ignorar o fato de que Lula começou sua vida política em São Paulo e que, por ter conquistado relevância na sociedade daquele Estado é que teve projeção nacional.

Em seu discurso da vitória, Lula disse: “a partir de 1º de janeiro de 2023 vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação.” O presidente eleito fez a sua obrigação como chefe de estado (coisa que, convenhamos, esquecemos como era ter nos últimos quatro anos), mas a grande verdade é que, por mais que o seu governo se empenhe em criar condições para que o Brasil seja mais igualitário, nós provavelmente nunca seremos um só povo. Nunca fomos. A própria diferença na votação é uma prova escancarada disto. O posicionamento progressista do Norte e Nordeste não é nada mais que o reflexo da nossa necessidade aumentada de políticas públicas que garantam nossos direitos básicos e nos tirem de um papel de colonizados dentro do nosso próprio país. Sempre fomos “o outro” dentro do Brasil. O Norte, a Amazônia, numa condição agravada originada no fato de que era uma colônia portuguesa autônoma – do Grão-Pará e Maranhão – que só aderiu ao estado brasileiro em 1823, um ano depois da independência mais esdruxula das Américas, na qual um monarca rompeu com a própria família para se autodeclarar imperador, e que não mudou em absolutamente nada a vida da população.

Ainda hoje é ínfima a quantidade de brasileiros que sabe alguma coisa sobre a Cabanagem, uma revolta realmente popular, liderada por caboclos, indígenas e negros, que explodiu em 1835 em Belém justamente pela negligência política de D. Pedro I em relação ao Norte, e que governou grande parte da região por mais de cinco anos, enquanto a Guerra dos Farrapos, que iniciou exatamente no mesmo ano, no Sul, liderada por membros de uma elite militar e política e com envolvimento dos Carbonari, uma sociedade secreta liberal italiana, já foi altamente documentada pela cultura popular brasileira – inclusive audiovisualmente em horário nobre da TV. É completamente esperado por nós, por exemplo, que sudestinos e sulistas, principalmente, ignorem a própria existência da região Norte, generalizando tudo como Nordeste. Quantas vezes, ao falar que era de Belém, já escutei “ah, eu adoro o Nordeste”, obrigando-me a responder que eu também, e que sinto muita pena de já não lá ir há muito mais tempo do que eu gostaria (mesmo que muita das vezes o meu interlocutor nem perceba a ironia da minha resposta)?

A nossa exclusão perante o Brasil, no entanto, não se resume apenas à ignorância do cidadão médio das outras regiões. Esta ignorância é somente uma consequência do ciclo político e econômico a que estamos presos desde a época da “independência”. O Pará, por exemplo, tem a energia elétrica mais cara do país mesmo sendo um exportador de energia e tendo, em seu território, duas das três maiores usinas hidrelétricas do país. Segundo o IBGE, o rendimento domiciliar per capita paraense é de R$847 – abaixo do salário-mínimo -, enquanto nos principais Estados do Sudeste a média é mais do que o dobro: R$1836 em São Paulo e R$1724 no Rio de Janeiro. O Maranhão, que pertence à Amazônia Legal e ao Nordeste, tem a menor renda per capita média do país, R$635. As mulheres brasileiras recebem, em média, 20,5% a menos do que os homens. As mulheres da Amazônia recebem, em média, 20% a menos do que as mulheres do resto do Brasil.

Mesmo que tão grande parte da população brasileira não tivesse aderido à ideologia fascistóide bolsonarista que chega ao cúmulo de ir para as ruas protestar contra a democracia e pelo cerceamento da própria liberdade, não seria real dizermos que somos uma só nação. Somos mais do que dois, somos muitos Brasis, desde a invasão europeia do nosso Pindorama, que deixou raízes segregatícias entranhadas tão profundamente que mais de quinhentos anos depois não conseguimos nem vislumbrar uma solução para extirpá-las.

O gabinete do ódio que (ainda) serve Bolsonaro conseguiu não só inflar mas autorizar comportamentos que antes eram, digamos, mais envergonhados, porém não nos iludamos que foi ele o criador de toda a barbárie que inunda os noticiários. Muito antes dele, a cada final de eleição presidencial, já existia a onda de ataques xenófobos contra o posicionamento do Nordeste, incluindo e ignorando a existência do Norte ao mesmo tempo (aliás, o próprio uso do termo xenofobia em relação a pessoas de mesma nacionalidade já é prova da segregação). Já existia a coação de patrões a seus empregados pelo voto, a compra de votos dos que vivem abaixo da linha da pobreza – aqueles que habitam as pequenas cidadezinhas isoladas e carentes do básico do básico e também os moradores das periferias, herdeiros de um sistema de escravidão e servidão que simplesmente declarou uma liberdade fictícia sem prover qualquer medida que garantisse a dignidade e cidadania das pessoas. Já existia um Sul e Sudeste “branco”, um Norte e Nordeste colorido – porém dominado por capitães do mato, um Centro Oeste “perdido” no meio, cambando para o lado “mais forte”, e racismo por todos os lados. Jesus Cristo já era arma de dominação desde a catequização de indígenas e africanos até a proliferação das igrejas evangélicas que ocuparam os nossos cinemas históricos e passaram a ensinar os seus fiéis a fazer arminha com as mãos. O “cidadão de bem” já achava que tinha a autoridade de impor a sua vontade e opinião de arma na mão, que pobre era tudo bandido e que bandido bom é bandido morto – se este bandido, claro, roubar para comprar pão, e não aqueles envolvidos em qualquer tipo de esquema de corrupção.

Começamos sim esta semana cheios de esperança, mas a mudança real depende muito mais do que um governo – mesmo que um discurso em prol da equidade, diversidade, da justiça social seja o primeiro passo. Precisamos focar na educação básica para que as próximas gerações, de Norte a Sul, tenham um pensamento crítico mínimo que permita distinguir o que é notícia ou uma fake news absurda, que entenda que não é aceitável fazer saudação nazista para a bandeira ou usar religião para fins eleitoreiros. Precisamos exigir que a Federação funcione e que todos os Estados sejam tratados com a mesma atenção política, social e econômica, desde as políticas públicas até o frete nas compras virtuais das grandes lojas, gratuitos para todo o Brasil menos para a região Norte. Espero um dia poder ver esses Brasis, ao menos, se reconhecerem. Sermos, de fato, só um, vai ser muito difícil de rolar.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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