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Comemorar aniversário de cidades é uma parada bem, digamos, curiosa para nós aqui do continente americano. Queremos celebrar a existência e o amor pelo lugar que nos pariu, mas a própria configuração da cidade é o resultado da violência de quem veio e invadiu. Hoje eu abri meu Instagram e postei uma foto num pôpôpô, no rio Guamá, declarando meu amor por esta cidade que completa 407 anos, sem me tocar na hora que esta é a mesma idade do luto por Mairi, a terra tupinambá violada pelos 140 portugueses – homens – que a transformaram em Belém do Pará.

Nossa memória e nossa conexão com a floresta foram exterminadas pela colonização que nos emoldurou de azulejos azuis e fez de nossos rios esgotos. Dos filhos caboclos nascidos das indígenas e, em seguida, africanas violentadas, fizeram sinônimo do pior que o racismo estrutural pode reservar. Aterramos o igarapé para construir um templo de mármore ao molde dos outros, marginalizamos as ervas que brotam para de tudo nos curar.

Nasci eu já muito tempo depois deste extermínio todo, numa selva de pedras, criada num apartamento, com medo dos bichos que os invasores roubaram o lar, sem saber quem eu era, sem saber que o caminho para ir era descobrir este meu lugar. E ao ir foi que vi que tanto do que me foi ensinado a ter orgulho é justamente o que me fere, o que me silencia, o que tenta fazer de mim o que não sou, o que me apaga.

Não posso voltar no tempo, não tenho uma DeLorean, não posso tirar do meu corpo (meta)físico quem eu sou também porque tanta coisa ruim aqui se passou. Porém, resinificar a miscigenação forçada não significa continuar a esquecer. Esquecer não mais. Seria firme se tomássemos, como povo, real posse do que depois acabou surgindo como fruto de amor, porque o amor, apesar de tudo, nunca foi aniquilado pela pólvora ou pela cólera, apesar de estar um pouco enterrado lá no Soledade. Redescubramos o nosso jeito de fazer a terra tremer porque, não é liga torta: ainda somos mairiuáras, somos muito tupinambás.

Foto: Tajá – Belém, 1987. Luiz Braga.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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