Publicado em: 19 de maio de 2025
É difícil digerir que um país que todos os anos, no 25 de abril, lota as suas ruas empunhando cravos vermelhos em comemoração pela democracia conquistada há 51 anos, deixe crescer representações políticas com ideais tão violentos, obscuros, anti-democráticos. Em uma das eleições mais imprevisíveis da história recente de Portugal, a Aliança Democrática (AD), o partido do primeiro-ministro Luís Montenegro, cuja queda em março deste ano em razão de possíveis irregularidades envolvendo sua empresa familiar causou as novas eleições, saiu vencedora das legislativas deste último domingo, 18 de maio, com 32,10% dos votos e 86 deputados eleitos — número que sobe para 89 se somados os três mandatos conquistados na Madeira, onde a coligação inclui o Partido Popular Monárquico (PPM). Os resultados geram incertezas quanto à governabilidade e ao papel crescente da extrema-direita no Parlamento.
Mais de 35% da população portuguesa não votou. A abstenção do direito político em Portugal é preocupante.
A disputa pelo segundo lugar só será definida depois da contabilização dos votos dos círculos do estrangeiro – as eleições portuguesas ainda são no papel. Tanto o Partido Socialista (PS) quanto o Chega, partido de extrema-direita com discursos extremistas de ódio, contabilizam, até o momento, 58 deputados cada. Em termos de votos, o PS obteve 23,38%, enquanto o Chega ficou próximo, com 22,56%. O empate levou Pedro Nuno Santos a anunciar sua demissão da liderança do PS, reconhecendo a derrota da legenda e convocando eleições internas, às quais não será candidato.
“Como disse Mário Soares, só é vencido quem desiste de lutar”, declarou o agora ex-secretário-geral do PS. Questionado sobre os motivos da derrota, Pedro Nuno foi sucinto: “É cedo para avaliações, mas os partidos que provocaram a instabilidade foram premiados”.
André Ventura, líder do Chega, que passou a semana internado em hospitais mas milagrosamente recuperou a saúde depois da votação, declarou “o fim do bipartidarismo” que, segundo ele, vigorava desde a Revolução dos Cravos. O partido, fundado em 2019, tem envolvimento de diversos dos seus deputados e dirigentes em casos judiciais e fiscais. Apesar discurso “rigoroso” contra a criminalidade, o partido conta atualmente com pelo menos 15 membros envolvidos em processos judiciais, investigações criminais ou condenações:
André Ventura é condenado civilmente por ofensa à honra e imagem devido a comentários sobre uma família do bairro da Jamaica. É investigado por incitamento ao ódio relacionado com declarações sobre a morte de Odair Moniz.
Pedro Frazão, vice-presidente do partido, foi condenado em 2022 a retratar-se após declarações falsas sobre Francisco Louçã, acusando-o de receber uma avença do BES.
Nuno Pardal Ribeiro é acusado de exploração sexual de menores, envolvendo um jovem de 15 anos. Renunciou ao mandato na Câmara Municipal de Lisboa e perdeu uma avença com a Câmara de Loures.
José Paulo Sousa, deputado na Assembleia Regional dos Açores, foi apanhado dirigindo um automóvel com uma taxa de álcool de 2,25 g/l, considerada crime.
Miguel Arruda é suspeito de furtar malas nos aeroportos de Lisboa e São Miguel, vendendo os conteúdos online. Desfiliou-se do Chega e é agora deputado não-inscrito.
Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, é investigado por incitamento ao ódio nas reações à morte de Odair Moniz e denunciado por agressão a um árbitro de 18 anos.
Cristina Rodrigues, deputada do Chega e ex-deputada do PAN, é investigada por dano após ser acusada de eliminar milhares de e-mails do PAN em 2020.
Marcus dos Santos, deputado, foi detido em 2004 e 2005 nos EUA por violação das regras de imigração.
Eduardo Teixeira, deputado, é investigado pelo Ministério Público em dois processos relacionados com falsas presenças enquanto era deputado do PSD.
Filipe Melo, deputado, teve salário penhorado devido a uma dívida de 15 mil euros a uma instituição frequentada pelo filho e é acusado de prestar declarações falsas em tribunal.
Ricardo Dias Pinto tinha uma dívida de quase 15 mil euros, extinta por falta de bens para penhorar.
João Tilly, deputado e youtuber, está sendo processado após chamar “baleia” a uma militante do próprio Chega; chegou a acordo para indenizar a vítima antes do julgamento.
Diva Ribeiro, deputada, foi denunciada em 2024 por agredir, cuspir e insultar a ex-mulher do seu atual companheiro em 2022.
Pedro Alves, líder da distrital de Aveiro, foi condenado por violência doméstica contra a ex-mulher em 2020.
João Silva, foi condenado por burla e furto a casas e igrejas.
Luís Montenegro reafirmou que a coligação tem legitimidade para formar governo e disse esperar “sentido de Estado e responsabilidade” das demais forças políticas. “Não me parece que haja outra solução de Governo que não aquela que dimana da vontade livre, democrática e convicta do povo português”, declarou.
Enquanto isso, o destaque no campo progressista foi o Livre, que subiu de quatro para seis deputados, com 4,20% dos votos, tornando-se a quinta maior força política do país. O partido liderado por Rui Tavares promete agora “dinamizar um grande movimento democrático e progressista” e se posicionar como uma alternativa firme à ascensão da extrema-direita.
O Bloco de Esquerda (BE) foi um dos principais derrotados. Obteve apenas 2% dos votos e caiu para dois deputados, menos da metade do que tinha. A coordenadora nacional, Mariana Mortágua, reconheceu a derrota e prometeu uma reflexão interna, mas assegurou: “O Bloco de Esquerda está aqui para enfrentar a extrema-direita”.
Já a CDU (PCP-PEV), mesmo perdendo um mandato e ficando com três deputados (3,03%), ultrapassou o BE, retomando sua posição à frente na esquerda. O porta-voz Paulo Raimundo agradeceu especialmente à juventude envolvida na campanha e prometeu “coragem para enfrentar a direita e a extrema-direita”.
O PAN manteve sua única representante, Inês Sousa Real, com 1,36% dos votos, mas viu seu apoio diminuir. A líder do partido lamentou o peso do “voto útil” e alertou para um “dia triste para a pluralidade democrática”.
Já o estreante Juntos Pelo Povo (JPP) conseguiu um feito expressivo ao eleger um deputado com apenas 0,34% dos votos, o que garantiu sua estreia no Parlamento nacional. Filipe Sousa, líder da sigla, manifestou preocupação com o crescimento da extrema-direita e criticou a instabilidade provocada pelos últimos governos.
A expectativa agora está na contagem dos votos do exterior, que definirão quem assumirá o papel de oposição principal, PS ou Chega. Ironicamente, um partido pautado numa política anti-imigração, está dependendo de como os emigrantes votaram para determinar seu futuro. A legislatura, de qualquer forma, começa com ares de ruptura, e os próximos meses serão decisivos para o equilíbrio democrático em Portugal.
Quando vim para Portugal, em 2018, logo depois das eleições brasileiras, os portugueses – até os desconhecidos, que eu falava na rua para alguma informação ou comprar um café – de todas as idades, ao perceberem meu sotaque, me perguntavam: “como um país como o Brasil elege um ser tão horrendo para a presidência da república?”. Apesar de o resultado (ainda) não ser tão grave aqui, hoje em dia sou eu quem pergunta: como é que o ódio cresceu tanto em um país como Portugal?
Se me responderem “a pobreza e os problemas sociais”, me desculpem, mas eles não são recentes. Nem a corrupção. Na verdade, com as tecnologias e a possibilidade da transparência governamental com um maior acesso à informação, ficou cada vez mais difícil cometer crimes e mais fácil a fiscalização e o conhecimento geral da nação.
O problema da moradia não é dos imigrantes pobres, que na maioria das vezes se submetem a condições deploráveis de vida por não conseguirem pagar os preços praticados de aluguel, e sim da falta de políticas públicas que não impediram que o olho dos próprios capitalistas portugueses crescesse em razão dos preços que os imigrantes ricos estão dispostos a pagar para viver no paraíso turístico que Portugal tenta se vender como. Aliás, se não forem os imigrantes, quem é que vai ser a força de trabalho que sustenta o turismo em Portugal?
Se não forem os imigrantes, quem serão os médicos a atender no Serviço Nacional de Saúde, que tem políticas de gestão e impregabilidade completamente surreais, o que leva os jovens portugueses recém-formados na área da saúde a emigrarem para países que tenham salários e planos de carreira melhores e que fazem do SNS dependente dos imigrantes tarefeiros que, por sua vez, também trabalham descontentes com a impossibilidade de uma vida estável, com direito a férias e décimo terceiro, e sem a possibilidade de validarem suas especialidades, deixando de oferecer à população portuguesa um serviço que tanto precisam, já que no país há carência de especialistas em muitíssimas áreas e uma consulta com os mesmos requer uma espera de meses.
Os discursos de ódio manobram uma população sofrida com respostas fáceis a problemas complexos. Os discursos de ódio validam o sentimento de superioridade de quem tem um pouco mais de bens e fomentam o poderio de quem ganha com um país dividido e sem direitos: o grande capital. Esperemos que, quem vê de fora, veja com melhor clareza e não proporcione um crescimento ainda maior à extrema-direita. O AD, pelo menos até agora, manteve o posicionamento de que, com o Chega, não se alia.
Agora, o país entrará num processo institucional decisivo para a formação do novo Governo. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, inicia uma ronda de audições com os partidos com assento parlamentar para aferir a viabilidade de um Executivo. Esta etapa, segundo a tradição republicana, pode levar vários dias, principalmente por causa do desempate entre PS e Chega dependente dos votos da emigração, cuja contagem só começa em 28 de maio. Só depois desse resultado é que será definido quem liderará oficialmente a oposição.
A composição final do Parlamento só será validada após a apuração dos votos no estrangeiro e o encerramento do prazo legal para recontagens ou impugnações. Só então a Comissão Nacional de Eleições (CNE) publicará o mapa oficial dos resultados no Diário da República. A tomada de posse dos deputados será agendada por conferência de líderes e, na primeira sessão, será eleito o novo presidente da Assembleia da República. Apenas após essa posse, o Presidente da República poderá indigitar formalmente o novo primeiro-ministro, sendo que, por norma, o líder do partido mais votado é convidado, desde que consiga garantir a governabilidade — um critério que Marcelo afirmou considerar essencial nesta legislatura.
Uma vez indigitado, o futuro primeiro-ministro apresentará a lista de ministros e secretários de Estado para a tomada de posse, o que pode ocorrer semanas após a eleição. Depois disso, o novo Governo deve apresentar o seu programa à Assembleia da República no prazo de 10 dias. O debate parlamentar é obrigatório, mas a votação só ocorre se houver apresentação de moções de apoio ou rejeição. Para rejeitar o programa, é necessário que uma maioria absoluta (116 deputados) vote contra — o que já aconteceu duas vezes desde 1974. Neste cenário político fragmentado, o papel do Parlamento será decisivo para definir a estabilidade e a longevidade do próximo Executivo.
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