“O Ministério Público do Estado oferece denúncia subscrita por promotores de justiça com atuação na 6ª Promotoria de Justiça do Juízo Singular de Belém, 3ª Promotoria de Justiça de Direitos Constitucionais Fundamentais, Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, e no GEPROC, na qual imputa a José Carlos Rodrigues de Sousa, Sérgio Duboc Moreira, Daura Irene Xavier Hage, Rosana Cristina Barletta de Castro, Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos e Josimar Pereira Gomes, todos qualificados, o cometimento dos crimes definidos nos artigos 288 e 312 do Código Penal, e art. 90 da Lei n° 8.666/93, em concurso material, segundo a regra do art. 69 do Código Penal.
De acordo com a imputação, foi protocolizado na 1ª Vara Penal de Inquéritos Policiais da comarca de Belém pedido para a decretação de medida cautelar de busca e apreensão com o objetivo de apreender documentos relacionados à Assembléia Legislativa do Estado do Pará (ALEPA) que evidenciassem qualquer tipo de fraude, em especial as existentes em folha de pagamento, que tivessem relação com o envolvimento dos denunciados em tais procedimentos naquela casa parlamentar. Prossegue a denúncia informando que a diligência acabou por revelar a existência de um poderoso esquema de desvio de dinheiro, público mediante a realização de processos licitatórios fraudulentos envolvendo empresas ligadas à denunciada Daura Irene Xavier Hage, que teria parentes como proprietários daquelas empresas. É o que se vê, destaca o órgão ministerial, dos contratos de constituição das empresas Tópicos – Comércio de Gêneros Alimentícios Limitado, de propriedade dos denunciados José Carlos Rodrigues de Sousa (ex-marido de Daura Irene Xavier Hage) e Josimar Pereira Gomes (cunhado deDaura Irene Xavier Hage e marido de Sada Suely Xavier Hage Gomes), sendo que José Carlos retirou-se da sociedade em 28.02.2008, nela ingressando Anilson dos Santos Barboz(s)a, irmão de Adailton dos Santos Barboza, homem de confiança de Daura Hage.
A denúncia menciona ainda as empresas Real Metais e Serviços Técnicos Limitada, de propriedade de Williame Tiago Hage Gomes, que é filho de Josimar Gomes, também sócio desta empresa, e Sada Suely Gomes; a empresa WTH Gomes Comercial e Serviços, de propriedade de Williame Tiago Hage Gomes; a empresa JW Comércio de Materiais de Construção e Serviços Limitado, com nome de fantasia TI & TA Materiais de Construção, de propriedade de Willy Tatiane Hage Gomes e de seu pai Josimar Pereira Gomes; a empresa JC Rodrigues de Sousa, de propriedade de José Carlos Rodrigues de Sousa; e, por fim, a empresa Tópicos Comércio de Gêneros Limitado e JC Rodrigues de Sousa, que pertencem ou pertenciam ao ex-marido de Daura Irene Xavier Hage, empresa esta que protagonizou um escândalo no parlamento estadual denominado “Tapiocouto”.
Prossegue o dominus litis ressaltando que a diligência resultou na apreensão de uma carta digitalizada em que José Carlos Rodrigues de Sousa ameaça revelar o esquema de desvio de dinheiro público dos cofres da ALEPA através de processos licitatórios, afirmando dispor de documentos, fotografias de mala de dinheiro, gravações de voz, etc, que confirmariam tais desvios.
Continua o relato esclarecendo que as investigações detectaram que todos os envolvidos acima citados encontram-se ou encontravam-se na folha de pagamento da ALEPA, em cujos contracheques foram inseridas vantagens indevidas, exceto José Carlos Rodrigues de Sousa.
De acordo com o órgão ministerial, os processos licitatórios da ALEPA apreendidos em poder do denunciado Sérgio Duboc no DETRAN são procedimentos montados com a participação das empresas organizadas por Daura Hage, e outras empresas que nunca participaram daqueles certames, conforme depoimentos prestados por Carlos Amílcar Pinheiro, Torquato dos Santos Filho, João Sidnei Rodrigues Prado, José Maria Varconcelos Ribeiro e Nilson Miguel Amaral de Jesus ao Ministério Público, e que são transcritos na denúncia.
A exordial se refere ainda à apreensão de um gravador digital na casa de José Carlos Rodrigues de Sousa, no Distrito de Mosqueiro, no fim do mês de maio, com mídia que registra a tentativa de um suposto grupo de cooptar testemunhas e co-réus, mediante compra do seu silêncio ou ameaças.
O parquet apresenta ainda considerações relacionadas à repercussão dos fatos no meio social, à afronta à dignidade humana, à afronta aos princípios da administração pública e à afronta à dignidade do Poder Legislativo estadual.
No item VI da denúncia, vem o órgão ministerial individualizar a conduta dos denunciados, atribuindo-lhes classificação jurídica penal. Destaca que vários foram os delitos praticados pelos denunciados, que agiam de forma diversificada, ora em conjunto, ora separadamente, conforme descreve:
“DAURA IRENE XAVIER HAGE, membro da comissão de licitação da ALEPA à época, fraudava os processo licitatórios da Casa de Leis para beneficiar as empresas seu ex-marido/companheiro JOSÉ CARLOS RODRIGUES DE SOUSA e de seu cunhado tanto, contava com a ajuda de SANDRO ROGÉRIO, outro membro da comissão de licitação o qual se encontra preso preventivamente.
O pagamento das empresas era efetivado com a anuência de SÉRGIO DUBOC MOREIRA e ROSANA DE CASTRO BARLETA, diretor financeiro e chefa do controle interno à época dos fatos, respectivamente, os quais de tudo participavam.
Assim agindo, DAURA IRENE XAVIER HAGE, SANDRO ROGÉRIO NOGUEIRA SOUSA MATOS, SÉRGIO DUBOC MOREIRA, JOSÉ CARLOS RODRIGUES DE SOUSA, JOSIMAR PEREIRA GOMES eROSANA CRISTINA BARLETA DE CASTRO encontram-se incursos nas sanções punitivas do art. 312 do Código de Processo Penal brasileiro…” (fls. 13)
Em relação ao crime de frustração ou fraude à licitação (art. 90 da Lei n° 8.666/93), explica o parquet que as assinaturas apostas nos processos licitatórios apreendidos no gabinete de Sérgio Moreira Duboc, no DETRAN, são falsificadas, o que significa que tais procedimentos eram “montados” visando dar um “ar” de legalidade à fraude. Diz que a finalidade da ação delituosa era desviar recurso do erário público mediante fraude às licitações.
Quanto ao crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal), diz o órgão ministerial que os denunciados agiram em nome de sete pessoas para desviar dinheiros dos cofres públicos da Assembléia Legislativa do Estado do Pará nos anos de 2005/2006, causando um prejuízo da ordem de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais).
A exordial acusatória vem instruída com documentos, termos de declarações, mídia em CD-ROM e peças, em original e cópias, que instruem procedimento instaurado no âmbito da 6ª Promotoria de Justiça do Juízo Singular de Belém.
A denúncia foi inicialmente distribuída à Vara de Entorpecentes e Combate às Organizações Criminosas, que declinou da competência, conforme decisão de fls. 192.
Os autos foram redistribuídos a este juízo, onde houve aditamento à denúncia, que se encontra acostado às fls. 200/201. Nele, esclarece o parquet que, por erro material, não foi feita na exordial a individualização da conduta dos denunciados, sendo a finalidade do aditamento suprir essa omissão, o que faz nos seguintes termos:
“Assim, no que diz respeito à atuação de Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos, Sérgio Duboc Moreira e Rosana Cristina Barleta de Castro, temos a esclarecer que:
Sandro Rogério Nogueira Souza Matos, engenheiro, Civil, possui participação ativa na execução do delito, na medida em que atesta a execução de obras nunca realizadas, bem como atesta a entrega de materiais adquiridos pela ALEPA os quais nunca foram entregues. Era a pessoa responsável pela fiscalização das obras licitadas e como tal atestava a execução das mesmas sem que estas tenham sido realizadas.
Rosana Cristina Barleta de Castro, era chefa do controle interno da ALEPA, na época e de tudo sabia, inclusive, chegou a intermediar um ‘acordo’ entre Daura Hage e José Carlos, para o pagamento de tributos junto a Receita Federal do Brasil, provenientes do dinheiro público que vertia dos cofres da ALEPA, através das empresas ligadas a Daura Hage por meio das licitações fraudulentas.
Note-se ainda, que a participação de Rosana Castro no fato delitivo, é evidenciada através das gravações apreendidas em poder de José Carlos Rodrigues dos Santos e da carta digitalizada apreendida em poder de Daura Hage, ambos constantes dos autos.
Note-se ainda, que Rosana Castro foi no mínimo omissa em suas funções, posto que fez ‘vista grossa’ para os desmandos de Daura Hage, inclusive tornando seguro o proveito do crime e dele, também, se beneficiando.
Sérgio Duboc Moreira, era a época dos fatos delitivos, Diretor do Departamento Financeiro da ALEPA e pessoa que efetivava o pagamento das obras não realizadas e das compras não entregues a ALEPA pelas empresas envolvidas em processos licitatórios fraudulentos pertencentes aos parentes de DAURA HAGE.
Os demais envolvidos na denúncia. São os parentes de DAURA HAGE os quais se beneficiaram diretamente dos lucros obtidos ilicitamente pela quadrilha de funcionários”. (fls. 200/201)
Após a juntada do aditamento aos autos pela secretaria da Vara, foram eles remetidos ao Ministério Público, de lá retornando com o pedido de diligências de fls. 203/209.
Decido.
Formulo, agora, juízo de admissibilidade da acusação.
A denúncia merece ser recebida, mas apenas em parte, em virtude de vício formal. É que não vejo preenchido requisito específico exigido no art. 41 do CPP em relação a José Carlos Rodrigues de Sousa e Josimar Pereira Gomes. No que afeta estes denunciados, a denúncia e seu aditamento posterior não descrevem, com a individualização mínima necessária para se assegurar o exercício efetivo de ampla defesa e contraditório, bem como delimitar o objeto da prova, as condutas que constituiriam, em tese, os crimes de peculato, quadrilha e frustração ou fraude à licitação. Exponho as minhas razões.
O processo penal tem por objeto os fatos imputados na denúncia. Esses fatos compreendem a conduta que o titular da ação penal pública atribui a alguém – que deve apresentar uma correspondência típica – com todos os detalhes de relevância penal. Em outras palavras, o objeto do processo é definido pela imputação penal, assim entendida a descrição do comportamento que esteja previsto em um tipo penal – e que é feita na denúncia – cuja prática se atribui ao réu. Essa exigência, que decorre da própria redação do art. 41 do CPP, quando estabelece que a denúncia “conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”, é de extrema importância, por quatro razões: primeiro, porque é a imputação que delimita os fatos que serão apreciados pelo julgador (princípio da correlação entre acusação e sentença); segundo, porque é a descrição do comportamento imputado que orientará o exercício da ampla defesa – tanto da autodefesa quanto da defesa técnica – já que, no processo penal, o réu se defende dos fatos que lhe são atribuídos; terceiro, porque o objeto da prova, cujo ônus é de quem acusa, será delimitado pela descrição do fato delituoso feita na denúncia; e quarto, porque é a individualização da conduta imputada, eventualmente reconhecida na sentença condenatória, que irá estabelecer os limites subjetivos da coisa julgada penal.
No sistema acusatório – e é esta a estrutura constitucional do nosso processo penal – não se admitem acusações implícitas, vagas, lacunosas ou omissas. A exposição do fato criminoso, com todas as circunstâncias de relevância penal – que integrem o tipo ou que reflitam na pena – deve ser textual, expressa, clara e objetiva.
O que se percebe, no vertente caso, é que a denúncia não especifica os atos que teriam sido praticados pelos denunciados José Carlos Rodrigues de Sousa e Josimar Pereira Gomes, de sorte que pudessem ser estes tomados, em juízo preliminar de mera admissibilidade da acusação, como co-autores dos crimes imputados aos demais denunciados. A denúncia faz referências vagas a José Carlos e Josimar na condição de sócios das empresas Real Metais e Serviços Técnicos Ltda, JW Comércio de Materiais de Construção e Serviços Ltda, JC Rodrigues de Sousa e Tópicos – Comércio de Gêneros Alimentícios Ltda, ressaltando ainda vínculos de parentesco entre estes e outros denunciados, bem como vínculos de parentesco com outros sócios das referidas empresas. Em relação a José Carlos Rodrigues de Sousa, há referências reiteradas à sua condição de ex-marido/companheiro da denunciada Daura Irene Xavier Hage. O mesmo ocorre em relação a Josimar Pereira Gomes, identificado como cunhado desta denunciada. E nada além disso.
A omissão se repete no aditamento de fls. 200/201, em que o comportamento destes dois denunciados é descrito, presumo, nos seguintes termos: “Os demais envolvidos na denúncia são os parentes de DAURA HAGE os quais se beneficiaram diretamente dos lucros obtidos ilicitamente pela quadrilha de funcionários”.
Falta à denúncia a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, de modo que se configure uma imputação à José Carlos e Josimar. Como se deu a participação destes denunciados nos crimes de peculato e frustração ou fraude à licitação? Que atos praticaram ou deixaram de praticar, e que contribuíram para a ação criminosa? Como foram beneficiados? Quantas vezes? De quais licitações as empresas cuja sociedade esses denunciados integram participaram? Quantas vezes? Qual o objeto das licitações? Qual a vantagem obtida ou que se pretendia obter e que corresponderia à adjudicação do objeto da licitação? A leitura da denúncia na responde a essas perguntas, pois não descreve um comportamento objetivo que constitua uma imputação fático-jurídica.
É claro que a simples circunstância de estes dois denunciados integrarem sociedades comerciais que participaram de processos licitatórios na ALEPA, e terem ligações de parentesco com a denunciada Daura Irene Xavier Hage, não constitui qualquer delito. E ainda que essas circunstâncias fossem tomadas como indícios de alguma prática delituosa, seria imprescindível, para a dedução da pretensão acusatória, a individualização de conduta de cada um desses acusados. E nesse caso, ao que parece, haveria também de ser a imputação dirigida a Williame Tiago Hage Gomes e Willy Tatiane Hage Gomes, já que estes, segundo a exordial, integravam sociedades comerciais que venceram licitações realizadas pela ALEPA e são filhos de Josimar Pereira Gomes, cunhado de Daura Irene Xavier Hage, o que constituiria, em princípio, relação de parentesco, ou, no mínimo, familiar. SeWilliame Tiago e Willy Tatiane não foram denunciados, não há razão para que o sejam José Carlos eJosimar, ao menos pelo que se depreende do relato feito na preambular acusatória.
A bem da verdade, a denúncia é, em diversos trechos, uma reprodução de partes do pedido de decretação de prisão preventiva dos denunciados José Carlos Rodrigues de Sousa, Sérgio Duboc Moreira e Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos, conforme se depreende de uma comparação visual entre as fls. 04/12 e 19/25 dos autos, e que se restringem a alegações em torno da investigação que então executava o Ministério Público.
A individualização da conduta imputada constitui, em especial nos casos de co-autoria, requisito imprescindível não apenas para assegurar o exercício efetivo da ampla defesa e do contraditório e delimitar o objeto da prova, mas, de igual modo, para concretizar o princípio da correlação entre a acusação e a sentença. Em outras palavras, a imputação é o que será julgado. Se não há imputação de conduta de forma clara e objetiva, a ação penal já nasce viciada. A inépcia da denúncia é, nesses casos, inafastável.
A doutrina processual penal vem assumindo clara posição nesse sentido. À guisa de exemplo, menciono o que a respeito da questão pondera Alexander Araújo de Souza:
“De importância fundamental no desenvolvimento da temática acusatória, é o conceito de imputação, que consiste na ‘atribuição ao réu da prática de determinadas condutas típicas ilícitas e culpáveis, bem como de todas as circunstâncias juridicamente relevantes’. Especificamente no que toca ao ordenamento jurídico brasileiro, o art. 41 do Código de Processo Penal dispõe que ‘a denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias’. De acordo com esta norma, e a fim de proporcionar a reação do acusado, a exposição do fato pela acusação deve ser clara, precisa e circunstanciada. ‘A descrição é clara quando permite verificar no fato os elementos constitutivos do tipo e as circunstâncias que o individualizam; é precisa quando bem determina o fato sem permitir confusão com outro; é circunstanciada quando contempla todas as circunstâncias necessárias para a identificação dos elementos do tipo correspondentes ao fato e para individualizar o fato no contexto temporal e espacial em que se manifestou’.
Neste contexto, soa inarredável afirmar que devam ser repudiadas, por abusivas, as imputações genéricas, vagas ou imprecisas. Com efeito, a exigência de imputações certas e determinadas tem estreita ligação com os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (Art. 5º, LV, da Constituição da República), e impõe-se como obrigação daqueles a quem foi conferida legitimação para deduzir em juízo a pretensão punitiva. E estes não poderão desconsiderar este postulado, sob pena de utilização abusiva ou temerária do direito de ação penal. Por outro lado, sob o prisma do réu, soa indispensável que este possa conhecer precisamente de que conduta ou condutas criminosas está sendo acusado, bem como tudo o que de relevante circunda o agir que lhe é atribuído, a fim de efetivar a reação defensiva à imputação.
Quando a acusação envolve concurso de agentes, a conduta de cada um dos acusados deve ser claramente individualizada. Para que possam realizar plenamente sua defesa, os co-autores ou partícipes necessitam saber qual é a parcela de contribuição para o fato criminoso que lhes está sendo imputada. Aliás, é exatamente nas hipóteses de crimes praticados em concurso de agentes que a acusação está sujeita, com maior freqüência, a incorrer em abuso, por ausência da especificação da conduta de cada um dos envolvidos.” (SOUZA, Alexandre Araújo de. O abuso do Direito no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 96-98)
O mesmo posicionamento é defendido por Eugênio Pacelli de Oliveira e Douglas Fischer:
“Inépcia da denúncia ou da queixa: o essencial em qualquer peça acusatória, seja ela denúncia, seja queixa, é a imputação, com a precisa atribuição a alguém do cometimento ou da prática de um fato bem especificado. Esse, ou esses, os fatos, devem ser descritos com rigor de detalhes, para que sobre eles se desenvolva a atividade probatória. A exigência de delimitação precisa do fato imputado encontra-se na linha de aplicação do princípio constitucional da ampla defesa. Para que seja ampla a defesa é necessário, então, que se saiba, com precisão, qual o fato que se diz ser o réu o autor, para que ele possa, na maior medida possível, definir os meios de prova que se ajustarão à espécie, segundo os seus interesse, bem como possa também, dar a ele (fato) a definição de direito que favoreça aos interesses defensivos.
Por isso, o CPP não desce à minúcias na regualçai da pela inicial acusatória, exigindo apenas a exposição do fato e suas circunstâncias, a sua classificação (juízo de tipicidade) e a apresentação do rol de testemunhas a serem ouvidas, tudo a permitir, desde o início, o amplo exercício da atividade defensiva.
De outro lado, o exemplo mais freqüente de inépcia da acusação, e como não poderia deixar de ser, diz respeito à descrição dos fatos e suas circunstâncias. Nessa ordem de idéias, o que deve ser analisado é, por primeiro, a presença de elementos dificultadores da compreensão da imputação ali descrita, e, em um segundo momento, as conseqüências daí derivadas, relativamente ao amplo exercício da defesa. Se a peça da acusação, por exemplo, narra fatos cuja constatação no tempo e no espaço demonstra, desde logo, a incompatibilidade de sua ocorrência (ou de um deles); se a inicial narra fatos diversos, imputando-os a mais de um réu, sem esclarecer qual deles teria realizado um ou outro (fato); se a inicial, ainda por exemplo, na hipótese de pluralidade de réus, não imputa a um ou mais réus nenhum comportamento, apesar de ter feito a descrição precisa em relação aos demais. Em todas essas situações, a inépcia da peça acusatória será uma exigência do princípio da ampla defesa.” (OLIVEIRA. Eugênio Pacelli de. FISHER. Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 102-103) grifado
E esta interpretação não está restrita ao âmbito doutrinário do argumento de autoridade. A jurisprudência é pródiga em decisões que reconhecem a inépcia da denúncia na falta ou insuficiência de individualização da conduta a ser imputada, sobretudo nas hipóteses de co-autoria. Cito alguns desses julgados:
“O sistema jurídico vigente no Brasil – tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático – impõe ao Ministério Público a obrigação de expor, de maneira objetiva e individualizada, a participação das pessoas acusadas da suposta prática da infração penal, a fim de que o Poder Judiciário, ao resolver a controvérsia penal, possa, em obséquio aos postulados essenciais do direito penal da culpa e do princípio constitucional do due process of law, ter em consideração, sem transgredir esses vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, a conduta individual do réu, a ser analisada, em sua expressão concreta, em face dos elementos abstratos contidos no preceito primário de incriminação. O ordenamento positivo brasileiro repudia as acusações genéricas e repele as sentenças indeterminadas ( STF, 1ª Turma, HC 73590/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 13.12.1996, p. 50.162) “Adicionar numa denúncia nomes de pessoas imputando-lhes co-autoria de crime sem descrever de forma sucinta a conduta delitiva atribuída aos acusados, inviabilizando, portanto, a avaliação correta da existência ou não de um crime em tese a apurar, configura evidente constrangimento ilegal, reparável por habeas corpus” (STJ, 5ª Turma, HC 1268/SP, Rel. Min, Edson Vidigal, DJU de 14.09.1992, p. 14.979)
“1. A perfeita descrição do comportamento irrogado na denúncia é pressuposto para o exercício da ampla defesa. Do contrário, a peça lacônica causa perplexidade, prejudicando tanto o posicionamento pessoal do réu em juízo como a atuação do defensor técnico. In casu, a inserção do paciente no universo acusatório sem se lhe atribuir, de modo claro, qual teria sido sua contribuição efetiva para a prática dos crimes de lavagem de dinheiro, corrupção ativa, falsificação e quadrilha tinge de ilegal a persecução penal. Tendo a denúncia listado vinte e dois documentos falsificados e a imputação restrita a doze, tem-se prejuízo para a defesa dada a ausência de individualização do objeto da imputação.
“De nada adiantam os princípios constitucionais e processuais do contraditório, da ampla defesa, em suma, do devido processo legal na face substantiva e processual, das próprias regras do estado democrático de direito, se permitido for à acusação oferecer denúncia genérica, vaga, se não se permitir a individualização da conduta de cada réu, em crimes plurissubjetivos. O simples fato de uma pessoa pertencer à diretoria de uma empresa, só por só, não significa que ela deva ser responsabilizada pelo crime ali praticado, sob pena de consagração da responsabilidade objetiva repudiada pelo nosso direito penal. É possível atribuir aos denunciados a prática de um mesmo ato (denúncia geral), porquanto todos deles participaram, mas não é possível narrar vários atos sem dizer quem os praticou, atribuindo-os a todos, pois neste caso não se tem uma denúncia geral, mas genérica.
Recurso provido para declarar a inépcia da denúncia e a nulidade dos atos que lhe sucederam. (STJ, RHC 24.515/DF, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 16/03/2009)
“1. Diante da ausência de qualquer imputação fática relativa à paciente, é de se reconhecer a inépcia da denúncia, evidenciando-se a violação à garantia da ampla defesa, causa de nulidade absoluta.
3. Ordem concedida para anular o processo, a partir da denúncia, inclusive, sem prejuízo de que outra seja oferecida, agora com a adequada individualização dos fatos, apenas com relação à paciente, mantendo-se a condenação quanto aos demais co-réus.” (HC 75.441/PB, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 23/03/2010, DJe 14/04/2010).
Esta análise me leva a concluir pela irremediável inépcia da denúncia em relação a José Carlos Rodrigues de Sousa e Josimar Pereira Gomes, em virtude do não preenchimento de requisito exigido pelo art. 41 do CPP, e que implica a rejeição da acusação no que alcança esses denunciados, na forma preconizada pelo art. 395, I, do CPP.
Em relação aos denunciados Sérgio Duboc Moreira, Daura Irene Xavier Hage, Rosana Cristina Barletta de Castro e Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos, entendo que a denúncia satisfaz os requisitos de forma, e vem amparada em justa causa que autoriza a propositura da ação penal.
O comportamento imputado a Daura Irene Xavier Hage está descrito, de forma sintética, à fl. 13. A conduta atribuída a Sérgio Duboc Moreira, Rosana Cristina Barletta de Castro e Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos encontra-se narrada no aditamento, acostado às fls. 200/201. Essa descrição, conquanto concisa, permite aos denunciados o exercício, nesta fase inaugural da persecução criminal em juízo, de ampla defesa e contraditório, em especial para apresentação de resposta à acusação, na forma dos artigos 396 e 396-A do CPP.
A ação imputada a esses denunciados pode ser tomada, por ora, como ajustável à definição típica dos crimes previstos no art. 312, caput, do Código Penal e art. 90 da Lei n° 8.666/93, bem como à do delito do art. 288 do Código Penal, já que a associação abrangeria, ainda que excluídos da ação penal dois denunciados, quatro agentes.
As infrações penais imputadas na denúncia sujeitam-se a procedimentos diferenciados: o peculato, ao rito previsto nos artigos 513 a 518 do CPP; a frustração ou fraude à licitação, ao que dispõem os artigos 100 a 108 da Lei n° 8.666/93; e a quadrilha ou bando, ao rito sumário, conforme estabelece o art. 394, II, do CPP. Nada obstante, e segundo o que preconiza o art. 394, § 4°, do diploma processual penal, a fase inicial disciplinada pelos artigos 395 a 398 aplica-se a todos os procedimentos penais, inclusive aos especiais regulados pelo Código de Processo Penal ou outro texto legal. A par disso, sabe-se que a maior dilação de prazos do procedimento comum ordinário, e a possibilidade da prática de atos não previstos em outros ritos recomenda a sua aplicação quando a ação penal abranger crimes de ritos diversos, já que, entende-se, o rito ordinário proporciona ao acusado exercício mais amplo do direito de defesa. Por essas razões, a presente ação penal seguirá as regras do procedimento ordinário.
Diante do exposto, recebo a denúncia de fls. 02/15 e o aditamento de fls. 200/201, por entender satisfeitos os requisitos do art. 41 do CPP, bem como vislumbrar justa causa para a ação penal, em relação a Sérgio Duboc Moreira, Daura Irene Xavier Hage, Rosana Cristina Barletta de Castro e Sandro Rogério Nogueira Sousa Matos, admitindo preliminarmente a classificação jurídica dada aos fatos pelo órgão ministerial.
Citem-se estes acusados para os fins do art. 396-A do CPP.
Rejeito, com fundamento no art. 395, I, do CPP, a denúncia e o aditamento em relação a José Carlos Rodrigues de Sousa e Josimar Pereira Gomes, por não ver em tais peças individualização de conduta que preencha as exigências do art. 41 do CPP, de modo a torná-las ineptas.
Defiro o requerimento de diligências do Ministério Público apresentado ao final da manifestação de fls. 203/209, nos itens a), b), c), d) e e). Determino à secretaria a expedição do que for necessário.
Oficie-se à 1ª Vara de Inquéritos Policiais de Belém, solicitando-se a remessa dos autos de todos os incidentes que lá tiveram curso, e relacionados ao objeto da presente ação penal. Uma vez recebidos em secretaria, proceda-se ao apensamento.
Intime-se o Ministério Público desta decisão. Caso não haja recurso, ou não sobrevenha novo aditamento com a imputação de conduta delituosa a José Carlos Rodrigues de Sousa e Josimar Pereira Gomes, proceda-se à exclusão de seus nomes do registro do LIBRA e da autuação.
Cumpra-se.
Belém (PA), 28 de julho de 2011.
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