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Quem conhece o Bairro da Pedreira, hoje com amplas avenidas e travessas, a maior parte asfaltada, inúmeros estabelecimentos comerciais, agências bancárias e até mesmo edifícios, não tem condições de imaginá-lo no início do século XX, assim por volta de 1930, quando todo o município de Belém não chegava a ter duzentos mil habitantes.

Naquela época, aconteceu uma história capaz de arrepiar os cabelos dos mais corajosos…!

Guapindaia Assu de Moraes, já falecido, que viveu quase toda a sua vida na Pedreira e contou vários casos visagentos e assombrosos, foi o narrador da estranha história de uma senhora, que vivia sozinha. Ou melhor, sozinha não: tinha como companhia… gatos, vários gatos!

Na Av. Marquês de Herval, no perímetro compreendido entre as travessas do Chaco e Humaitá, existia o campo de futebol do Humaitá Esporte Clube. O campo ficava encravado na área formada pelos quintais de todas as casas daquele trecho da avenida, incluindo o quintal de uma certa casa. Esta ficava de frente para a Av. Marquês de Herval, e, embora um tanto deteriorada, era coberta de telhas de barro, demonstrando, na sua estrutura arruinada, que fora uma bonita vivenda. Em suas esburacadas paredes, existiam muitos quadros reproduzidos a crayon e oleogravuras de militares e damas antigas, quadros estes que certamente haviam pertencido a alguma pinacoteca particular. Móveis, embora desconjuntados, mostravam o quanto luxuosos haviam sido.

O terreno em que ficava a casa, inclusive o quintal mencionado, possuía muitas árvores frutíferas. Guapindaia e seus companheiros de turma apanhavam as frutas, mesmo com os protestos da senhora moradora e zeladora da casa e do terreno. Ela era única herdeira da propriedade, que pertencera a certo coronel da Guarda Nacional, o que explicava a presença de tantos quadros com figuras militares.

Além da casa e das árvores frutíferas, havia no terreno um poço muito profundo e de água boa e cristalina. Os moradores das adjacências a utilizavam para suas necessidades, e os jogadores de futebol com ela saciavam sua sede nos intervalos dos jogos. O poço tinha as paredes e a boca feitas de tijolos e era voz corrente que havia sido obra dos revolucionários cabanos no século XIX.

Pois bem! Era nesta casa e neste terreno que a senhora moradora, zeladora e única herdeira da propriedade do coronel da Guarda Nacional passava seus dias. Vivia tranquila. Era uma velha branca e alta, curvada pelo peso dos anos, cabelos embranquecidos, presos no alto da cabeça em forma de cocó. O rosto enrugado como um pergaminho não era suficiente para esconder seu aspecto senhoril, valorizado por intensos olhos azuis. Apesar de seu aspecto e da propriedade, vivia da venda de frutas, de tapioca e de cuscuz. Em sua companhia, vivendo na casa, apenas gatos, muitos gatos, ou, mais precisamente, sete gatos, o que lhe valeu o apelido de “velha dos sete gatos”.

Entre as árvores existentes no quintal, destacava-se frondoso jenipapeiro. Era uma árvore secular, com o tronco nodoso e muito altaneira. Seus ramos cobriam uma parte do telhado da casa e estendiam-se sobre o único caminho usado pelos moradores das vizinhanças. Noites escuras ou enluaradas, os galhos, como se fossem braços ciclópicos, balançavam lá no alto, ao sabor das ventanias. Os raios de luar não conseguiam ultrapassar aquele rendilhado de folhagens. O local transformava-se em apavorante penumbra. Ouvia-se apenas o roçar das asas dos morcegos, o piar das corujas e os bacuraus, disputando os jenipapos caídos. De longe, se podia ouvir o baco… baco… bacurau…! O local passou a ser evitado à noite, obrigando os moradores a procurar outros caminhos.

Durante o dia, a velha era vista varrendo o terreno acompanhada daqueles gatos a miar… a miar… a miar… deixando em frangalhos os nervos dos que ouviam os miados. Quando escurecia, recolhia-se aos seus aposentos, e, com ela, os gatos.

E assim o tempo passava no antigo Bairro da Pedreira, até que um dia… Os moradores mais próximos notaram que a velha não saía mais de casa… os dias passavam e… nada da “velha dos sete gatos” aparecer…! Conversa vai, conversa vem, os moradores aventaram várias hipóteses, entre as quais a de que poderia ter se mudado, pois a casa já ameaçava cair. Uma a uma as hipóteses foram afastadas: se tivesse se mudado, teriam visto, pois não seria possível sair com todos aqueles móveis e quadros sem ser notada. Resolveram investigar. E lá foram várias pessoas corajosas e decididas e, pé ante pé, olharam pelos buracos das paredes… O que viram e ouviram as deixou enregeladas: os gatos estavam todos em cima da cama e, com miados angustiados, andavam sobre o corpo sem vida da pobre velha, que já exalava mal cheiro, tornando o quadro tétrico e horripilante.

A polícia distrital da Pedreira foi avisada, e para lá se dirigiu o comissário Daldi Rocha, que tomou as providências cabíveis, mandando sepultar o corpo da “velha dos sete gatos”. A casa ficou abandonada, servindo de refúgio apenas para os gatos que, aos poucos, foram se dispersando. Mas o local tornou-se mal-assombrado! Altas horas da noite, lá aparecia… um fantasma…! E nele reconheceram a “velha dos sete gatos”…!

Mas… sempre aparecem pessoas valentes e corajosas, pessoas que negam a existência do sobrenatural, que negam a existência de visagens e assombrações… Vejamos, portanto, o que aconteceu com Fabriciano, um ex-fuzileiro naval. Era um preto gigantesco, com quase dois metros de altura, forte e valente. Nada temia e ria-se quando ouvia falar do fantasma do jenipapeiro, do fantasma da “velha dos sete gatos”. Dizia simplesmente:

— Não acredito nisto; passo as noites por lá para juntar jenipapos e nunca vi nada.

Aproximava-se o mês de junho, e em casa do velho Pedro Nazaré realizava-se o ensaio geral do grupo junino “Bigode”, no qual Fabriciano desempenhava o papel de soldado. Terminado o ensaio, seguiu-se festa dançante na sede do grupo, localizada na Av. Marquês de Herval. Fabriciano, que na época era estivador e não dançava, assim falou:

— A festa está muito boa, mas tenho que dormir, pois minha chapa na estiva está na boca e não posso me arriscar a deixar passar.

Advertiram-no:

— Olha, vai dar meia-noite! Cuidado com o fantasma do jenipapeiro, a “velha dos sete gatos”!

Fabriciano riu alto:

— Qual nada, fantasma não existe!

E, decidido, seguiu pelo caminho por todos evitado, andando cerelemente.

Não demorou muito tempo! Após dez minutos, surgiu no portão Fabriciano, passos apressados, lívido, o semblante transtornado. E, quando conseguiu falar, foi para dizer:

— Eu vi o fantasma da “velha dos sete gatos”. Surgiu branco e brilhante, vindo do nada. Tomou forma humana, agitando os braços e crescendo em minha direção. Fiquei paralisado de medo, meu corpo parece que ficou maior do que já é e se tornou muito, muito pesado, meus cabelos cresceram, um suor frio correu pelo meu corpo, e os pés pareceram criar raízes no solo, e a coisa crescendo… crescendo… crescendo em minha direção… Até que, com um último esforço, consegui me desgrudar do solo e correr… juro que tive medo! Eu vi o fantasma do jenipapeiro…!

E, a partir daí, na longínqua década de 30 do século XX, em Belém, com menos de duzentos mil habitantes, as pessoas moradoras daquelas paragens, ou melhor, de todo o Bairro da Pedreira do Samba e do Amor, não mais passaram, à noite, perto do campo de futebol do Humaitá Esporte Clube, onde havia uma casa em ruínas, onde havia um terreno com árvores frutíferas, onde havia um jenipapeiro… onde havia um fantasma… o fantasma da “velha dos sete gatos”…

Walcyr Monteiro
Escritor, Jornalista, Educador, Poeta, Folclorista, Licenciado em Ciências Sociais e Bacharel em Economia.

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