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– Flora, queres casar comigo?

A pergunta já era esperada, depois de quase três anos de namoro. Mesmo assim foi com profunda emoção que a escutou. E foi emocionada, com a voz embargada, que respondeu:

– Sim, meu amor. Sabes muito bem que este é o meu maior desejo.

O jovem casal de namorados permaneceu ali, na praça, trocando carinhos e juras de amor. Relembraram como se tinham conhecido, a simpatia recíproca, a atração mútua, o primeiro encontro, os passeios, enfim, o que havia sido suas vidas nos últimos tempos. Samuel, vinte e um anos, era um rapaz trabalhador e ajudava o pai, desde criança, na compra e revenda de produtos agrícolas. A experiência adquirida já lhe permitia, sem o auxílio do pai, escolher e comprar mercadorias, dar preços e realizar transações, que aos poucos iam lhe dando autonomia financeira. Até o momento em que o pai, não sem certo orgulho, disse que podia organizar seu próprio negócio, pois já estava “maduro” para isto. Passados alguns meses, sentiu-se seguro e em condições de dar o passo em direção ao casamento. Flora tinha 19 anos, cursava o segundo grau e já era excelente dona-de-casa, em função do aprendizado com a mãe. Cozinhava bem, preparava mesmo certos quitutes e até ganhava um dinheirinho com isto, quando recebia encomendas para aniversários, batizados e outros festejos. Costurava também, o que permitia complementar o que ganhava com as iguarias. E Samuel e Flora ficaram naquele dia fazendo planos para o futuro casamento, que desejavam o mais breve possível.

O tempo foi passando. Ambos economizando tudo o que podiam, com vistas ao novo lar que pretendiam construir. A união era bem vista pelos pais, que também ajudavam, principalmente os pais de Flora, na preparação do enxoval. Correram os proclamas, foram distribuídos convites aos parentes e amigos e todos esperavam ansiosamente o dia do casamento.

Vinte dias antes da data marcada, eis que Flora repentinamente adoece. Ninguém sabia o que era e, depois de muitos chás e outros remédios caseiros ensinados pelas comadres e demais parentes de sua mãe, resolveram chamar um médico.

O esculápio examinou atenta e minuciosamente, nada encontrando, além de testemunhar que a jovem definhava dia a dia, sem uma causa aparente. Exames foram solicitados em caráter de urgência, e, após chegarem, o médico continuava sem diagnóstico. Receitou uns fortificantes, aos quais os familiares acrescentaram outros, de origem caseira, inclusive o famoso “leite do Amapá”, que levantava até defunto. Mas, debalde! Flora enfraquecia cada vez mais, ante o olhar incrédulo de Samuel. O rapaz estava desesperado, vendo a noiva extinguir-se aos poucos, sem nada poder fazer. Passava horas e horas ao lado da rede de Flora, procurando dar força e coragem para enfrentar a enfermidade desconhecida, que ia lhe tirando a vida. Samuel desdobrava-se em atenções, levava pequenas lembranças e frutas para sua amada, que agradecia com um leve sorriso nos lábios. A data do casamento estava próxima e já todos sabiam que não mais ia se realizar, pelo estado em que a noiva se encontrava. Apenas Samuel achava que, como por milagre, Flora levantaria de uma hora para outra e iriam finalmente concretizar o seu sonho.

Dois dias antes do casamento, a moça chama Samuel para junto de si:

– Samuca, quero te desobrigar do compromisso…

– Que é isto, meu bem? Vais ficar boa e nós vamos casar. Não vai ser depois de amanhã, mas será em outro dia. Quando estiveres boa, marcaremos nova data e pronto. Verás que isto tudo que está acontecendo é apenas um sonho mau. Temos toda uma vida pela frente!

O rapaz havia falado com grande convicção, que Flora até riu de seu arroubo, mas foi calma e resignadamente que falou.

– Tu (destacou bem o tu) tens toda uma vida pela frente. Eu, não. Eu vou morrer e sei disto. E já sei há algum tempo. Não quis falar a ninguém para não tentarem me animar e gastar as palavras em vão. O nosso sonho de amor não vai se concretizar. É por isto que estou te desobrigando…

– Mas, o que que é isto, Florazinha? Pelo amor de Deus! Me conheces muito bem, sabes que és o meu único amor, a única mulher de minha vida e…

– Está bem, está bem, Samuca. Mas não podes casar com uma morta e eu vou morrer. Sinto que vou morrer e não vai demorar. E se te desobrigo é porque não quero que tenhas qualquer tipo de remorso quando encontrares outra mulher…

– Não fala mais! Não diz mais nada. Não sabes o que estás dizendo. Estás delirando… Olha, Florazinha, eu te amo, só a ti eu amarei, não haverá nenhuma outra mulher na minha vida, mesmo que possa te acontecer alguma coisa, o que não vai ocorrer. Vais ficar boa e nos casaremos.

– E, por favor, não diz mais nada…

– Bem, Samuquinha, eu agradeço toda a atenção que tens me dado. Tu tens sido muito bom para mim e não poderias ser melhor. Porém, mais uma vez te digo: estás desobrigado de qualquer compromisso comigo e podes casar com quem quiseres…

– Chega, chega, Flora, de falar bobagem! Já disse que te amo e não haverá outra mulher na minha vida. Eu juro, minha querida, juro que na minha cabeça e no meu coração só há e só haverá lugar para ti. E não fala mais nada…

Flora sorriu. Um sorriso triste, um sorriso de despedida… Pouco depois morria, deixando Samuel inconsolável. Parentes e amigos presentes ao enterro viram o rapaz transtornado, debruçado ao caixão, dizer repetidas vezes: – Eu te amo. Viverás sempre em minha mente e em meu coração…

Os dias que se seguiram ao enterro de Flora foram terríveis para Samuel. Parecia obcecado pela imagem da moça, vivia falando nela e no amor eterno que devotaria à sua lembrança…

O tempo, porém, cura todas as mazelas e feridas sentimentais. E não poderia ser diferente com Samuel, que estava em pleno vigor da juventude.

Passados dois anos, conheceu Violeta, morena muito simpática e bem feita de corpo, que aos poucos foi conquistando o rapaz e este foi sucumbido aos seus encantos. Vez em quando lembrava Flora, ora sorrindo nos passeios que faziam, ora em seus braços trocando juras de amor, ora ainda às vésperas de morrer, desobrigando-o do compromisso assumido… Mas lembrava muito pouco, e cada vez menos, do compromisso de amá-la eternamente… As lembranças foram ficando vagas em sua memória, tanto mais vagas quanto mais crescia o seu interesse por Violeta, até sumirem totalmente…

– Queres casar comigo?

Violeta sorriu radiante. Esperava ardentemente este pedido, após dois anos de namoro. Feito o pedido à família da moça, foi o casamento marcado. Tudo sem muitas delongas, até porque os negócios de Samuel iam muito bem e ele já tinha casa montada e tudo o mais necessário ao dito popular que “quem casa, faz casa”…

O casamento de Samuel despertou uma certa curiosidade. Quase todos lembravam o noivado com Flora e o seu desfecho trágico, sem falar nas promessas do rapaz… Evitavam, porém, comentários, a fim de não constrange-lo e muito menos a Violeta.

Finalmente, chegou o dia do casamento. Violeta estava linda vestida de noiva, despertando as atenções gerais. A cerimônia foi realizada normalmente, até o momento em que…

Logo depois do “sim” dos noivos e da fala do padre “eu os declaro marido e mulher”, quando se prepararam para a tradicional fotografia defronte do altar, Violeta repentinamente sentiu-se mal. Empalideceu e, após o espocar do “flash” da máquina fotográfica, desmaiou, provocando grande correria na igreja…

Revelada a foto dos noivos no altar, entre eles, porém mais próximo a Samuel, via-se nitidamente o rosto de Flora, como a lembrar do juramento de amor eterno, e de que ela viveria, sempre, em sua mente e em seu coração…!
walcyr@supridados.com.br

 

Walcyr Monteiro
Escritor, Jornalista, Educador, Poeta, Folclorista, Licenciado em Ciências Sociais e Bacharel em Economia.

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